28 junho 2009

uma rua estreita


No seguimento do meu post anterior, gostaria de voltar ao tema de liberdade humana sob o ponto de vista de cada uma das culturas católica e protestante.

A intolerância espiritual do catolicismo produz uma espécie muito peculiar de homem livre. É um homem invariavelmente só. Perante uma cultura circundante de intolerância generalizada, um homem apenas consegue ser espiritualmente livre se se retirar deste mundo. Os conventos e os mosteiros são instituições tipicamente católicas e os grandes símbolos da religiosidade católica são quase que invariavelmente pessoas retiradas deste mundo. Mesmo entre os laicos - Alexandre Herculano é o exemplo que ocorre ao espírito - a experiência não é diferente. O próprio Papa, o homem mais livre da Igreja Católica, é um homem retirado do mundo, e no Portugal do Estado Novo o homem mais livre do país, talvez o único - Salazar - era um homem imensamente só.
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Pelo contrário, a tolerância espiritual do protestantismo conduz cada homem a realizar a sua espiritualidade em comunhão com os outros, e em obras deste mundo. As grandes realizações modernas do espírito humano, a democracia, o capitalismo, a ciência, a tecnologia e a filosofia moderna são, quase exclusivamente, obras da cultura protestante.
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O espírito do homem comum criado na tradição católica assemelha-se a uma rua estreita ladeada por muros muito altos - uma espécie de prisão. O seu espírito reprimido, fechado, egoísta e céptico contrasta com a largueza, a abertura, a generosidade e o optimismo de espírito que é típico do homem de cultura protestante. Nesta ortodoxia do espírito realiza o catolicismo a sua unidade cristã, já que no domínio das acções, o catolicismo caracteriza-se por uma imensa liberdade de acção que chega ao ponto da tolerância ao pecado. Para o protestantismo, pelo contrário, a unidade cristã está nas acções, já que a liberdade de espírito consente aí que um homem seja até anti-cristão (o ateísmo e o agnosticismo modernos são, eles também, criações da cultura protestante).
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Para o catolicismo, a unidade cristã está nos pensamentos e nas palavras, que não nas acções; para o protestantismo está nas acções, que não nos pensamentos nem nas palavras. Para o catolicismo pensar diferente é uma heresia, enquanto que para o protestantismo a heresia está exclusivamente no pecado. Esta diferença confere uma aparência enganosa às sociedades assentes quer numa quer noutra das tradições. A sociedade católica é na aparência muito cristã, na realidade é-o muito pouco. A sociedade protestante, pelo contrário, tem uma aparência muito pouco cristã, às vezes até anti-cristã. Na prática, é uma sociedade muito mais cristã do que a católica.
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Nos últimos séculos têm sido as sociedades de cultura católica, como Portugal, Espanha e os seus descendentes na América Latina, a tentar imitar as sociedades protestantes nas suas instituições, na sua prosperidade, na sua maneira mais cristã de viver - e não o contrário. Porém, limitaram-se, em geral, a imitar as instituições, sem reformarem os homens e a sua cultura, que foi a transformação radical da Reforma Protestante. Por isso, as tentativas falharam quase sempre.
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Ainda hoje falhou mais uma. Na tradição protestante, o árbitro da política é a lei. Na tradição católica são os militares. O Presidente das Honduras, fazendo jus à sua cultura católica, quis fazer batota democrática, ainda que referendada. Os militares não deixaram. E lá foi a democracia.

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