Eu tenho-me frequentemente interrogado como é que um país de cultura tão entranhadamente católica como Portugal, uma cultura tão fundada na ideia da verdade, consegue ser um país tão avesso à discussão salubre das ideias.
Uma resposta possível é que esse país e essa cultura possuem, de facto, a verdade, e que essa cultura vem acompanhada de mecanismos espontâneos que excluem todas as ideias alternativas porque elas não são verdade. Só uma cultura que não tem a certeza do que é a verdade, como é a cultura protestante, pode estar aberta à discussão de ideias novas.
A questão é que em muitas situações da vida não é possível saber onde está a verdade. Procurando a verdade para decidir nessas situações, sem a encontrar de forma firme, a cultura católica, quando é chamada a tomar decisões, fá-lo por vezes sobre terrenos movediços acerca do que é a verdade e possui o potencial para criar grossas injustiças. A injustiça é o grande calcanhar de Aquiles da cultura católica. Uma sociedade de cultura católica corre o risco de viver duradouramente sob a injustiça.
A cultura protestante tem um ponto de partida diferente. Entre duas petições, A e não-A, sobre o que é a verdade, e onde o apuramento da verdade é difícil, senão mesmo impossível, ela preocupa-se, em primeiro lugar, em encontrar uma solução justa ou equitativa (fair). Essa solução pode envolver atribuir 50% de razão a A e outros 50% a não-A, e essa solução será final se ambas as partes a considerarem aceitável (fair). Que importa a verdade se ambas as partes que a reivindicam, mesmo de forma oposta, consideram aceitável o resultado de 50% de razão para cada lado? Já se vê que não podendo A e não-A serem verdades ao mesmo tempo, o grande calcanhar de Aquiles da cultura protestante é a falsidade. Uma sociedade de cultura protestante corre o risco de viver duradouramente sob a falsidade.
John Rawls é, talvez, o autor moderno que melhor colocou a discussão da democracia numa base racional e científica. Ele parte do dilema entre verdade e justiça, reconhecendo que "Being first virtues oof human activity, truth and justice are uncompromising". Porém, a sua teoria da democracia está inteiramente fundada, como seria de esperar num autor protestante (Rawls é americano) na ideia (intuitiva) da primazia da justiça sobre a verdade: "These propositions seem to express our intuitive conviction of the primacy of justice". (*)
A democracia aparece então como uma instituição de justiça, uma instituição que permite a expressão de todas as verdades e que reconhece proporcionalmente razão a todas as verdades. Porém, se a primazia fôr atribuida à verdade, e não à justiça, a democracia deixa de se justificar, porque então a verdade, uma vez encontrada, tem de ser imposta a todos, mesmo àqueles que discordam dela. O regime adequado passa a ser um regime baseado na autoridade.
Não é possível à democracia funcionar bem numa cultura católica, como a portuguesa, que atribui primazia à verdade. Aí a democracia passa a ser um mecanismo através do qual a facção ganhadora se reconhece o direito e a legitimidade para impôr a sua verdade aos outros. Como não é possível encontrar a verdade, para além de qualquer dúvida, na maior parte dos assuntos de natureza social, e muito menos demonstrá-la, a democracia está destinada a ser ressentida como injustiça por parte daqueles a quem ela impõe a verdade ganhadora.
Aqui reside a dificuldade do funcionamento eficaz da democracia em Portugal. A democracia só será viável quando os portugueses abandonarem a verdade como ideia-suprema da sua cultura e a substituirem pela ideia de justiça, isto é, quando deixarem de ser católicos. Eu penso que os portugueses estão muito longe disso. Tomar a justiça como ideia-suprema da sua cultura exige que os portugueses adoptem como comportamento de base a Regra de Ouro, e tratem os outros como gostariam os os outros os tratassem a eles.
Não é fácil ter laboratórios nestas matérias sociais, mas a blogosfera constitui um laboratório ainda que imperfeito, como são todos os laboratórios. Procure o leitor entrar na caixa de comentários de um blogue aberto, tome cada um dos comentários e os seus respectivos autores, e em seguida formule a questão: "Será que este comentador gostaria que o tratassem a ele como ele está a tratar a outra pessoa (outro comentador, o blogger, ou uma terceira pessoa)?". Se a sua resposta fôr maioritariamente Sim esse é um sinal que Portugal está a caminho da democracia. Se fôr não, então é mau sinal.
(*) John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 4
(*) John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 4
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