10 março 2009

À procura do Dedé


A tradição católica chega à verdade directamente através da razão, ao passo que a tradição protestante chega à verdade indirectamente através do julgamento que, em primeiro lugar, se destina a produzir justiça (equidade). A tradição católica parte dos factos e, por um processo de dedução racional e lógica, chega à verdade. Por isso, a verdade na tradição católica exprime-se por uma afirmação (statement).
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Pelo contrário, a tradição protestante parte de duas teses (tese e antítese) que, em si mesmas e a priori, não são nem verdadeiras nem falsas. São meras alegações. As teses são então submetidas a um julgamento em que cada uma das partes procura apresentar o máximo de evidência empírica a seu favor. A verdade está no veredicto e exprime-se por uma tese (síntese).
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A verdade da tradição católica é, pois, absoluta, exprimindo-se por uma afirmação acerca da qual não há recurso argumentativo e lógico. Pelo contrário, a verdade da tradição protestante é meramente tendencial ou relativa, exprimindo-se por uma tese (síntese) que não nega necessariamente cada uma das teses em litígio, mas que se limita em geral a fazer prevalecer uma sobre a outra.
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Segue-se que a verdade na tradição católica não se decide da mesma maneira que a verdade na tradição protestante. Nesta tradição a verdade necessita de evidência empírica ou factual a seu favor, ao passo que na tradição católica os factos são as premissas da verdade e estão contidos nela. A verdade da tradição protestante só pode ser negada por falsificação empírica, ao passo que a verdade da tradição católica só pode ser negada por argumento racional e lógico.
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Procurarei ilustrar a diferença em relação à ideia de Deus. Para estabelecer a verdade acerca da ideia de Deus, a tradição católica parte dos factos. Os factos dizem que não existe nenhuma sociedade humana, ou alguma vez existiu, que não assente na ideia de Deus. Nenhuma. E todas as tentativas até agora realizadas para construir uma sociedade humana sem a ideia de Deus falharam. Logo, a humanidade é imposssível sem Deus. Em consequência, a ideia de Deus existe (caso contrário, a humanidade não existiria). Está feita a prova da existência da ideia de Deus.
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Deixarei de lado por um momento a questão de saber "Mas onde é que está Deus?" para ilustrar como a tradição protestante decide acerca da verdade de Deus. Ela começa por contrapôr a tese A - "Deus existe" à sua antítese, a tese B - "Deus não existe" e, em seguida propõe-se pronunciar julgamento, ou fazer justiça, sobre as duas teses em litígio. Para tal, requer a cada uma das partes que apresente evidência empírica em suporte da sua respectiva tese.
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É neste momento que a tradição protestante entre por um caminho irracional. Repare-se que a tradição católica demonstra a verdade da ideia de Deus, mas em nenhum momento afirma a sua existência física. Pelo contrário, as partes A e B da tradição protestante vão agora procurar no mundo real e dos sentidos - na natureza e na sociedade - sinais da existência de Deus, ou da sua inexistência.
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A parte A - "Deus existe", em particular, vai agora partir mundo fora a procurar sinais da existência de Deus em cada esquina - como, por exemplo, nos milagres -, e até a ver se encontra Deus pelo caminho. Mas é claro que Deus não pode andar por aí no meio dos humanos, caso contrário não seria Deus. Seria o Dedé, que todos ou alguns de nós conheceríamos de se cruzar connosco na rua. Nem pode Deus andar a fazer milagres a cada esquina, sem que fosse objecto de comentários jocosos como este: "Olha, hoje o Dedé passou por aqui e deixou uns milagres". A Parte litigante A - "Deus existe" está, pois, destinada a ridicularizar-se aos olhos de qualquer júri imparcial. Tanto mais que a Parte B - "Deus não existe", pode indicar catástrofes naturais e situações de injustiça no mundo como "evidência" de que Deus não existe. O veredicto de um júri imparcial está destinado a pender para o lado B - "Deus não existe".
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O Terramoto de Lisboa de 1755 foi utilizado pelos filósofos iluministas da época, como Kant, Voltaire e Molière, para escrutinizar a existência, ou não, de Deus - uma peça de "evidência empírica" que evidentemente faria pender o julgamento de qualquer júri imparcial para o lado da tese B - "Deus não existe". Tendo sido a tradição protestante a colocar pela primeira vez a questão da verdade de Deus nestes termos, não surpreende que o primeiro filósofo ateu tenha saído desta tradição. Foi David Hume.
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A tradição católica aquilo que demonstra, sem margem para contestação, é a verdade da ideia de Deus. Ela não demonstra, nem pretende demonstrar, a sua existência física nem, como procurei argumentar acima, Deus alguma vez poderia ter existência física. Seria um Dedé. Mas pode então perguntar-se: "Onde é que está Deus?". A resposta é óbvia: está em cada um de nós, no espírito de cada homem.

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