01 março 2009

filtros


O erro de Kant não consistiu em conceber as categorais do intelecto. Consistiu em assumir que essas categorias eram iguais para toda a gente. A partir daqui, todas as suas teses, em todos os domínios sobre os quais escreveu, são verdadeiras apenas para a sua cultura - a cultura protestante do cristianismo - e são falsas, conduzindo a um genuíno diálogo de surdos, quando aplicadas a outras culturas, como a católica.

Na perpectiva de Kant, as categorias do intelecto são filtros através dos quais a razão depura as percepções sensórias, e os filtros são os mesmos para todos os homens. É como se se fizesse passar diferentes lotes de café com diferentes graus de impureza - as percepções dos sentidos - por filtros iguais e igualmente poderosos - as categorias do pensamento. No final do processo, todos os cafés teriam o mesmo sabor - a verdade seria a mesma para todos os homens.

Nas últimas semanas, eu não tenho feito outra coisa neste blogue senão mostrar que os filtros são diferentes - muito diferentes mesmo. O filtro principal do homem de tradição católica é a verdade, o filtro principal do homem de tradição protestante é a justiça. O homem de tradição católica filtra a realidade através da ideia de verdade e o homem de tradição protestante fá-lo através da ideia de justiça. Por isso, uma instituição da sociedade protestante, que fomenta a harmonia e o progresso social nesta sociedade, quando transplantada para um sociedade católica e filtrada aí por um filtro diferente produz efeitos muito diferentes e quase sempre opostos. O mesmo se aplica em sentido inverso (*). O último exemplo que forneci acerca disto foi ainda hoje quando mostrei que o positivismo jurídico, sendo uma doutrina protestante, que pode promover a harmonia e o progresso numa sociedade com esta cultura, torna-se, numa sociedade católica, uma fonte inesgotável de zaragatas que a conduzem ao caos.

Um dos exemplos doutrinais recentes, e mais conhecidos, do erro kantiano é a tese do Fim da História, de Francis Fukuyama, uma tese que o próprio autor entretanto já abandonou. Se as categorias ou filtros do intelecto são os mesmos para toda a humanidade, então as instituições da democracia-liberal, que já provaram promover a paz e a prosperidade sociais numa certa parte do mundo - o mundo protestante, leia-se - acabarão por ser aceites e desejadas em todas as partes do mundo. A paz perpétua de Kant está atingida. Acabaram-se os conflitos entre a humanidade. É o fim da história.

Uma aplicação desta tese foi observável no sentimento de self-righteousness com que os americanos decidiram invadir o Iraque. Eles iam libertar o povo iraquiano, instaurar no país uma democracia-liberal. Se a democracia-liberal era boa para os americanos, para os ingleses, para os alemães e os australianos, porque é que não havia de ser boa para os iraquianos? Desenganaram-se quando foram recebidos a tiro nas ruas de Bagdad, não pelas tropas de Hussein, porque essas não possuíam força organizada que fosse match para eles, mas pelo povo anónimo que os matava a cada esquina. A razão é que os filtros dos iraquianos são muito diferentes dos filtros dos americanos, e, mesmo entre os primeiros, existem diferenças substanciais entre os sunitas e os xiitas. Quando os americanos sairem do Iraque, não ficará lá a democracia-liberal. Ficará lá a guerra civil, porque entre duas culturas (filtros) diferentes não existe diálogo duradouro possível. O seu estado normal é o confronto, a guerra, e a paz só é atingida quando uma dominar a outra (como acontecia no tempo de Saddam Hussein).

A diferença e a importância das culturas (filtros) não é observável apenas entre nações. É observável também entre homens e mulheres, entre médicos e gestores, entre professores e juristas, e até no mesmo homem com diferentes idades. As possibilidades de diálogo são muito restritas, rapidamente ele se torna um diálogo de surdos, em breve surge o conflito, e a questão só se resolve com uma cultura a dominar a outra. Um homem de 60 anos seria incapaz de dialogar por mais de cinco minutos consigo próprio quando tinha vinte anos, rapidamente estes dois homens entrariam em conflito, que só acabaria com um a dominar o outro. Um homem (mulher) experiente - isto é, com os filtros amadurecidos pelos anos - sabe que o diálogo com uma mulher (homem) sobre certos temas desaba inevitavelmente no conflito. A impossibilidade de chegarem a um consenso é radical. No não-entendimento desta impossibilidade encontra-se a fonte da esmagadora maioria dos casos de violência doméstica entre casais.

Se a tradição protestante, e o pensamento de Kant que tão bem a representa, possui uma verdade que é apenas relativa e válida para a sua própria cultura, e falsa para todas as outras, quem possui a verdade plena e absoluta - será a tradição católica ou outra, como a judaica ou a muçulmana?

Eu tenho de admitir que, no momento em que escrevo, não possuo uma resposta para esta questão, mas estou convencido que saberei um dia dar-lhe resposta, e uma resposta sustentada em argumento racional, fundado e indestrutível. Mas tenho uma intuição. Cingindo-me à comparação entre a cultura protestante e a cultura católica, o grande filtro da primeira é justiça, o grande filtro da segunda é a verdade. De que lado está a verdade? É mais provável que esteja do lado da cultura católica, porque é ela que, mais do que a outra, procura a verdade.
.
(*) Considere uma instituição genuinamente da cultura católica - o programa oficial único de ensino nos níveis básico e secundário, imposto pelo Ministério da Educação. Aplique esta instituição nos EUA ou na Inglaterra. Ao fim de 30 anos no máximo, que é o tempo que demora a crescer uma geração, estes dois países estarão mergulhados na violência.

Sem comentários: