Ao escrever este post veio-me à memória um episódio ocorrido há cerca de dois ou três anos e ao qual nunca mais dei importância. Há vários anos que eu tinha decidido nunca mais participar em debates públicos em Portugal. As razões devem parecer óbvias para os leitores que me seguem. Os debates públicos no nosso país nunca produzem nada, excepto adversidade e, por vezes, inimizade entre as pessoas.
Aconteceu então que um dia recebi uma carta de uma Escola secundária dos arredores do Porto para proferir uma palestra aos seus alunos sobre um tema que, francamente, já não me recordo qual era. Por carta também, agradeci o convite, mas declinei. Passados dias tinha ao telefone o Presidente do Conselho Directivo da Escola que me pedia encarecidamente que aceitasse, que os professores da Escola me apreciavam muito e que o evento não seria o mesmo sem a minha presença. Acabei por aceitar.
Na manhã do dia aprazado, enquanto apontava o carro na direcção de Santa Maria da Feira, eu ia feliz. Eu estava há já alguns anos retirado de toda a actividade académica, e a ideia de voltar a entrar numa sala de aula, mesmo para alunos do secundário, excitou-me. À chegada, fui recebido pelo Conselho Directivo, com a simpatia que só os portugueses sabem ter. Passados minutos dirigimo-nos para a sala de aula onde a palestra iria ter lugar. Estariam lá cerca de 60 alunos, com idades entre os 14 e os 15 anos.
Na mesa, em cima do estrado, sentaram-se ao centro três professores pertencentes ao conselho directivo da Escola, eu à esquerda deles e, no outro extremo, à direita, estava um jovem. O Presidente do Conselho Directivo apresentou-me e, para minha surpresa, apresentou depois o outro conferencista, fulano de tal, membro do Bloco de Esquerda. Foi então que caí em mim e dei pelo mal-entendido. Aquilo não era uma palestra a ser proferida por mim, era um debate. A responsabilidade era certamente minha. Eu sempre estivera convencido que o convite era para uma palestra e não para um debate, e por isso também nunca perguntei.
Aconteceu então que um dia recebi uma carta de uma Escola secundária dos arredores do Porto para proferir uma palestra aos seus alunos sobre um tema que, francamente, já não me recordo qual era. Por carta também, agradeci o convite, mas declinei. Passados dias tinha ao telefone o Presidente do Conselho Directivo da Escola que me pedia encarecidamente que aceitasse, que os professores da Escola me apreciavam muito e que o evento não seria o mesmo sem a minha presença. Acabei por aceitar.
Na manhã do dia aprazado, enquanto apontava o carro na direcção de Santa Maria da Feira, eu ia feliz. Eu estava há já alguns anos retirado de toda a actividade académica, e a ideia de voltar a entrar numa sala de aula, mesmo para alunos do secundário, excitou-me. À chegada, fui recebido pelo Conselho Directivo, com a simpatia que só os portugueses sabem ter. Passados minutos dirigimo-nos para a sala de aula onde a palestra iria ter lugar. Estariam lá cerca de 60 alunos, com idades entre os 14 e os 15 anos.
Na mesa, em cima do estrado, sentaram-se ao centro três professores pertencentes ao conselho directivo da Escola, eu à esquerda deles e, no outro extremo, à direita, estava um jovem. O Presidente do Conselho Directivo apresentou-me e, para minha surpresa, apresentou depois o outro conferencista, fulano de tal, membro do Bloco de Esquerda. Foi então que caí em mim e dei pelo mal-entendido. Aquilo não era uma palestra a ser proferida por mim, era um debate. A responsabilidade era certamente minha. Eu sempre estivera convencido que o convite era para uma palestra e não para um debate, e por isso também nunca perguntei.
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O orador do BE, que ia contracenar comigo, teria pouco mais de 20 anos, de aspecto esbragalado, cabelos em pé, a barba por fazer. Eu, nos meus cinquenta e tal anos, apresentei-me da forma como a minha mãe sempre me ensinou a fazer, e que a minha mulher de mais de trinta anos continuou a zelar para que eu me apresentasse: fato (ou alternativamente saia-casaco, isto é, o blaser azul e a calça cinzenta), camisa engomada e gravata, penteado e barba feita.
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Foi o rapaz do BE o primeiro a falar sobre o tema. Qual não é o meu espanto quando ele, mal abriu a boca, desata a dizer que o Dr. Pedro Arroja era conhecido por ser um adepto do capitalismo e do mercado, que até defendia a privatização dos rios e a venda de órgãos no mercado ... e foi por ali fora em tom jocoso e sempre depreciativo perante uma audiência de miúdos com um olhar entre o surpreendido e o divertido. Enquanto ele prosseguia naquele discurso, eu desliguei e, como sempre fiz nestas ocasiões, comecei a falar comigo próprio, desta vez entre o amofinado ("Ora esta!...") e o divertido ("OK. Let the boy enjoy himself...").
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Enquanto ele prosseguia a sua "comunicação" sempre na mesma tónica depreciativa e jocosa, eu pensei com os meus botões: "Bem, estás a abusar ... Vais ter de apanhar uma lição...". Na realidade, ali estava um rapazote que, já eu era homem e educava pessoas como ele, e ele ainda andava às cambalhotas na barriga da mãe, a denegrir-me, a fazer-me parecer mal e a ridicularizar-me. E ainda por cima estava a fazer tudo isso num ambiente onde eu sou facilmente desafiável e dificilmente batível - o ambiente da sala de aula. Eu passei milhares de horas da minha vida em salas de aula, falando para assembleias de estudantes em português e em estrangeiro, conheço os truques todos para lidar com tais assembleias - como interessá-las, provocá-las, deprimi-las, emocioná-las, seduzi-las, irritá-las até.
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Naquelas circunstâncias, a primeira regra a seguir era a de não passar cartão ao rapaz do BE que tão mal me tratava, porque isso seria pôr-me ao nível dele e dar-lhe importância. Para quem, como eu, sem sequer ter aberto a boca, já estava depreciado e coberto de ridículo aos olhos de uma audiência jovem e particularmente impressionável, aquilo que eu tinha de fazer era óbvio - inverter a minha imagem, e radicalmente. Quando ele acabou de falar e me foi dada a palavra, a primeira coisa que fiz foi levantar-me da mesa, descer do estrado e colocar-me junto à primeira fila de carteiras, muito próximo dos alunos. Era necessário que os alunos sentissem a proximidade física, iria ser necessário que eles sentissem o meu bafo até. Tinham-me sido atribuidos vinte minutos para falar. Eu não precisava de mais.
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Ao fim de cinco ou dez minutos minutos eu tinha a assembleia na mão. Todos os alunos estavam concentrados em mim e naquilo que eu dizia, e eu só falava sobre o tema do debate. Os dez minutos seguintes iriam ser críticos. Eu tinha de os manter concentrados em mim, só em mim e naquilo que eu dizia, e aquilo que eu dizia continuava a versar apenas sobre o tema do debate. À medida que o tempo foi passando, e enquanto falava, eu só dizia para mim: "Quero uma grande salva de palmas ... preciso que vocês me dêem uma grande salva de palmas...". Para isso os dois minutos finais tinham de ser empolgantes, eu tinha de meter uma pitada de emoção onde até então só falara a razão. E assim foi.
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À medida que o final da minha apresentação se aproximava, cheguei-me ainda mais à frente, as minhas pernas estavam agora vincadas na primeira fila das carteiras, o dorso levemente inclinado para a frente, a minha cara a dois palmos de distância dos alunos da primeira fila. Quando finalmente me calei, endireitei o corpo e recuei um passo, a gaiatada irrompeu numa grandiosa salva de palmas. Foi então que calmamente dei meia-volta, fiquei de frente para a mesa, caminhei lentamente para o meu lugar enquanto pela primeira vez fitei o rapaz do BE. Penso que ele entendeu a mensagem que eu tinha nos olhos: "P'rá próxima, não armes em parvo" (*).
(*) Olhando agora para trás, eu julgo que o meu parceiro no debate poderá ter sido este artista. Pode bem ter sido. Mas não posso garantir. Aquilo que posso garantir é que, se não foi ele, o género era rigorosamente idêntico.
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