11 fevereiro 2009

p'rás vítimas


Eu gostaria neste post de comparar as percepções que os portugueses têm acerca da sua vida pública hoje em dia com aquelas que possuiam durante os anos sessenta e até 1974, durante a vigência do Estado Novo. Escolho o tópico da corrupção.

As percepções sobre corrupção na vida pública são hoje muito negativas e isso não admira quando até o primeiro-ministro é atingido. A minha estimativa é que três-quartos dos casos sobre os quais estas percepções são formadas não têm fundamento na realidade e são o produto da propensão dos portugueses para a calúnia e da sua tendência para a fantasia, enquanto estimo que os fundamentos do quarto restante são muito mais ténues do que as percepções sugerem - e pelas mesmas razões.

Como quer que seja, a realidade é que as percepções de corrupção na vida pública são muito mais desfavoráveis hoje, do que eram no tempo do Estado Novo. Por outras palavras, do ponto de vista da corrupção (eu penso, na realidade, sob muitíssimos pontos de vista), os portugueses possuem hoje uma imagem muito mais negativa de Portugal do que tiveram alguma vez durante o período do Estado Novo.

Tendo vivido vinte anos sob o regime do Estado Novo eu não consigo reconstruir na minha memória um único caso de corrupção significativo. Dir-se-à que, existindo censura, os casos não vinham a público. O argumento da censura tem sido utilizado para explicar mais do que aquilo que ele pode explicar. Naquela altura, todos os portugueses que quisessem falavam de política, na família, no grupo de amigos, no escritório, nos cafés, nas universidades, até em público - desde que, em público, não falassem de forma abertamente hostil contra o regime. Em certas Faculdades não se falava doutra coisa, talvez muito mais do que sobre as respectivas matérias de estudo. Os cafés eram talvez a fronteira entre o privado, onde a liberdade de expressão era total, e o público, onde era preciso ter algum cuidado. Até ao limites dessa fronteira circulavam, por vezes, alegações de corrupção na vida pública portuguesa. O alvo principal, mas não único, era o Almirante Henrique Terreiro.

Estas alegações nunca chegavam a público - por exemplo, através da imprensa -, não por causa da censura, mas pela razão que se compreenderá a seguir. E a razão é que, depois da Revolução do 25 de Abril, a vida dos governantes do Estado Novo foi investigada ao detalhe, houve mesmo quem propusesse processos judiciais contra eles por corrupção, mas esses processos nunca avançaramr porque não havia matéria. Nem mesmo contra o Almirante Tenreiro.

Quanto a Salazar contavam-se também histórias, por vezes sob a forma de anedota, mas as anedotas tinham, entre outros, o propósito de deixar a dúvida no espírito de quem as ouvia. Por exemplo, aquela que foi posta a circular depois das grandes cheias de Lisboa em 1967, que vitimizaram pessoas e propriedade.

O Governo apelou na altura aos cidadãos portugueses para auxiliarem as vítimas, sob a forma de bens e dinheiro. E muitos portugueses, pessoas e instituições, assim fizeram. O auxílio foi centralizado pelo Governo. Contava-se então que um dia o Salazar chamou o Cardeal Cerejeira para uma reunião no Palácio de S. Bento. Entraram para uma sala e lá ficaram fechados durante muito tempo. A certa altura, o contínuo, estranhando a demora, aproximou-se da porta para tentar perceber a razão, e ouviu a voz do Salazar:

-P'ra mim ... p'ra ti ... p'rás vítimas ... P'ra mim ... p'ra ti ... p'rás vítimas ... P'ra mim ... p'ra ti ... p'rás vítimas ...

Curioso, o contínuo espreitou pelo buraco da fechadura. Estavam o Salazar e o Cerejeira sentados numa mesa, um de frente para o outro, o dinheiro do auxílio às vítimas sobre a mesa. Dizia o Salazar:

-P'ra mim (tirando uma nota para si) ... p'ra ti (tirando uma nota para o Cerejeira) ... p'rás vítimas (fazendo o gesto do tanas).

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