14 fevereiro 2009

para além de Badajoz


Em posts anteriores, tenho referido a incapacidade da cultura portuguesa para o pensamento abstracto como uma das suas grandes deficiências, e os custos que essa deficiência, por vezes, acarreta. Por isso, eu não posso senão sentir admiração por homens como Teixeira de Pascoaes que, neste particular, são verdadeiras excepções na nossa cultura.
.
Pascoaes procurou construir uma ciência - a ciência, que ele na altura chamou arte, de Ser Português - e que gostaria de ver ensinada nas escolas. Este sonho, infelizmente, nunca se concretizou. Mas pode um dia concretizar-se - outros, entretanto, contribuiram, e ainda outros contribuirão no futuro para essa ciência, que seria um ramo da sociologia, e que teria um enorme alcance prático para todos os portugueses, especialmente nos domínios, social, económico e político.
.
Porém, a mera capacidade de Pascoaes para imaginar e ser o iniciador de uma nova ciência revela imediatamente a sua propensão para o pensamento abstracto. A ciência faz-se de abstracções, não da coleccção de factos desligados entre si, como é próprio do pensamento concreto.
.
A minha pretensão neste post é dupla. Pretendo, primeiro, salientar duas limitações de Pascoaes. Segundo, pretendo juntar-lhe alguns outros homens da nossa cultura que, no meu conhecimento, contribuiram para a ciência que ele pretendia ver desenvolvida e extraír daí uma hipótese de trabalho futuro.

O livro onde Pascoaes reune as suas observações acerca dos portugueses - A Arte de Ser Português - é um livro verdadeiramente original e fundador. Tem, porém, algumas limitações, de que destacarei agora duas. A primeira é que os defeitos que ele aponta aos portugueses são em muito maior número do que as qualidades - exactamente o dobro. Tal deve-se ao facto de a cultura portuguesa exibir o seu melhor na esfera privada, e o seu pior na esfera pública. Para quem observa de fora, sem penetrar na cultura íntima dos portugueses - nas suas casas, nos seus círculos de amigos, nas suas famílias, até nas suas camas - vê muito mais defeitos do que qualidades.

A segunda limitação reside no facto de Pascoaes não se ter apercebido que as qualidades e os defeitos que ele aponta aos portugueses não serem, na realidade, exclusivas dos portugueses. Existem também - apenas com uma diferença de grau - nos espanhóis, nos argentinos, nos venezuelanos, nos brasileiros, nos chilenos, nos peruano e nos italianos. São qualidades e defeitos da cultura católica. Neste aspecto, Pascoaes não conseguiu abstraír para além de Badajoz.

Pascoaes era um poeta e, entre os homens da cultura portuguesa, que revelaram a capacidade de abstracção necessária para contribuirem para a sua ciência do Ser Português, existem alguns que eu dou como certos: Alexandre Herculano, Salazar, Camões, Fernando Pessoa, para além dele próprio. Aquilo que me surpreendeu ao considerar este grupo é que existe nele uma desproporção de poetas. Estará a capacidade de abstracção, rara na cultura portuguesa, mais entre os poetas do que noutro grupo qualquer? E bem provável que sim, concluí. É que entre os grandes prosadores portugueses - homens como Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, a única excepção sendo talvez Camilo - eu não vejo a mínima capacidade de abstracção. Eça e Ramalho, neste aspecto, até metem dó.
.
É tomando como boa, embora de forma provisória, esta hipótese de trabalho que eu decidi ir conhecer melhor os poetas portugueses, com o propósito de poder contribuir para o desenvolvimento da ciência que Pascoaes fundou. É claro que eu ficaria muito grato aos leitores que, interessando-se por estas matérias, e conhecendo a poesia portuguesa melhor do que eu, me pudessem ajudar, indicando-me poetas em cujas obras exista uma tentativa ou um esforço para descrever o que é Ser Português.
.
(Nota: Eu próprio não consegui resistir a ser português no título que dei a este post, destacando uma limitação de Pascoaes, nunca uma sua qualidade.)

Sem comentários: