Deus dá, o homem troca
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Na realidade, eu quase me tornei célebre no país - na opinião de alguns, tristemente célebre - por ter defendido num programa de televisão e em vários artigos de jornal, a venda de orgãos humanos para transplante. Embora o meu argumento original dissesse respeito à cedência de orgãos post-mortem, eu não rejeito estendê-lo à cedência de orgãos em vida.
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Vinte séculos de civilização cristã inspiraram em nós crenças e sentimentos profundos - crenças e sentimentos que habitam permanentemente o nosso espírito, quase sempre sem nós darmos por eles ...
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Aos nossos olhos cristãos, a principal virtude de Deus é a bondade - a capacidade infinita que Ele tem para para perdoar e para recompensar. Ao imaginarmos Deus, nós acreditamos num Ser infinitamente bondoso, dotado de uma capacidade sem limites para dar - um Deus cujo filho deu a sua própria vida por nós.
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... tendo os homens sido feitos à imagem e semelhança de Deus, não surpeende que nesta vida terrena, a virtude principal - na realidade, a virtude das virtudes - seja a bondade. Aos nossos olhos cristãos, o homem virtuoso é inevitavelmente identificado com o homem bondoso - o homem dotado de uma infinita capacidade para dar, capaz de se despojar de tudo por amor ao próximo, incluindo a sua própria vida. Foi esse o exemplo de Cristo. "Dádiva" é a palavra de ordem do cristianismo.
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Num artigo recente, Michael Prowse questionou a primazia da bondade - entendida neste sentido de dádiva ou entrega ao próximo - como a maior de todas as virtudes. O Deus cristão, tal como nós o imaginamos, é um Ser que não possui necessidades insatisfeitas. Ele não precisa de se alimentar, de se calçar, de se abrigar. Ele não necessita de ganhar a vida para sustentar uma família. Um Deus assim todo-poderoso é um Deus que não precisa de fazer escolhas daquelas que confrontam os homens na Terra. Por isso, este Deus possui uma infinita capacidade para dar. No Reino de Deus não existe nenhum problema económico e a Economia é totalmente dispensável.
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A situação é diferente com o homem. O homem possui necessidades não-satisfeitas, algumas que lhe são impostas pela natureza, outras que ele próprio criou. O homem não pode praticar a dádiva antes de ele próprio assegurar a sua subsistência. Ele não pode dar sem primeiro produzir. O seu primeiro imperativo moral é produzir, assegurar a sua própria subsitência - isto é, cuidar dos seus próprios interesses. A esta luz, a bondade - sempre no sentido da dádiva ou entrega aos outros - permanece uma virtude, mas uma virtude secundária, uma virtude que vem depois da primeira de todas as virtudes - cuidar de si próprio, por forma a não constituir um fardo para os outros.
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... Deus pode dar e pode dar infinitamente. O homem não. Ele tem primeiro de produzir e, em seguida, trocar aquilo que produz pelos bens que lhe asseguram a subsistência (ou por um bem que represente poder geral de compra sobre todos esses bens - o dinheiro)
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A economia de mercado é a economia baseada na troca. Em troca do seu trabalho o homem recebe um salário, em troca daquilo que produz ele recebe um preço. Nem poderia ser de outro modo Uma sociedade humana baseada prioritariamente no princípio da dádiva ... seria uma sociedade infinitamente pobre e há muito teria desaparecido. Daí o valor ético dos preços, representando a compensação por aquilo que um homem produz em troca ...
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Cobrar um preço em troca do pão que produz, como faz o padeiro; cobrar um preço em troca dos sapatos que fabrica, como faz o sapateiro; cobrar um preço (salário) em troca do trabalho que produz, como faz o operário; cobrar um preço em troca de uma operação de transplante, como faz o médico; cobrar um preço em troca dos medicamentos necessários a essa operaão, como faz o farmaceutico - não é pecado. Pelo contrário é a maior de todas as virtudes. Caso contrário, como é que nós teríamos pão, e sapatos, e operários, e médicos especialistas em transplantes, e medicamentos para os transplantes? Não os teríamos de todo.
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Eu não vejo porque é que há-de ser diferente com os orgãos humanos para transplante. Nós não vivemos no Reino de Deus. Vivemos no reino dos homens - e aí, precisamos, em primeiro lugar, de viver. Só depois poderemos também ser bondosos... Por isso, eu não reconheço moralidade a uma lei que impõe a dádiva à força a todas as pessoas - os potenciais dadores de orgãos -, muitas das quais, e as suas famílias, não têm sequer pão para comer, roupa para se cobrir, uma casa para habitar, e ao mesmo tempo as impede de cobrar um preço que contribuiria para lhes proporcionar tudo isto.
(P. Arroja, DN, 22/Janeiro/95)
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