Neste post eu retomo o modelo puro da sociedade católica e da sociedade protestante que tenho vindo a desenvolver, para colocar a seguinte questão: o que é que acontece a uma sociedade C que adopta as instituições da sociedade P, que são as instituições da democracia-liberal? Por outras palavras, o que é que acontece à sociedade C que decide tornar-se uma sociedade P?
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A resposta geral a esta questão é a seguinte: aquilo que é bom na sociedade P vai tornar-se mau na sociedade C, na realidade, o melhor da sociedade P vai tornar-se o pior da sociedade C; e aquilo que é mau na sociedade C, e que até então permanecia privado e discreto, vai passar a ser exibido em público, reunindo nesta sociedade aquilo que de pior existe em cada uma.
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Sob certos aspectos, já respondi a esta questão. Assim, já demonstrei aqui que os juristas, que são a elite da sociedade P, se convertem na classe desordeira e destruidora da sociedade C; já mostrei também que o sistema de justiça, que é o sistema em que assenta a sociedade P, torna-se na sociedade C o sistema por onde se opera a ruptura desta sociedade. O meu propósito neste post é o de me concentrar num outro ponto específico, que é o de saber o que acontece na sociedade C quando ao povo se concede liberdade absoluta de expressão, que é uma instituição típica da sociedade P.
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Acontece indecência pública. Como argumentei no meu post anterior, aquilo que distingue a elite do povo na sociedade C é a sua capacidade de julgamento. É esta capacidade de julgamento da elite, censurando o povo nos seus comportamentos e opiniões que não são justos ou aceitáveis - numa palavra, que são indecentes -, e que resultam da sua falta de julgamento generalizada, que permite à sociedade C, na sua forma pura, aparecer em público com uma sociedade decente.
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Porém, a partir do momento em que o povo é admitido a exprimir-se em público livremente, a barreira da decência é quebrada e a indecência passa a ser generalizada. A indecência manifesta-se em público de múltiplas formas, pela linguagem utilizada em público, pela mentira pública, pelo insulto, pela calúnia e pela difamação públicas, pelo compadrio e o favorecimento exibido em público, pelas negociatas públicas, pela impunidade pública que é concedida aos prevaricadores de toda a espécie, pela impossibilidade de condenar os criminosos - em suma, pelo reino da desvergonha.
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Este clima social em que inicialmente a decência resiste e se bate contra a indecência, o bem se bate contra o mal, é agravado pelo facto de este processo ser um daqueles em que opera a chamada Lei de Gresham, o que significa que, a prazo, a indecência expulsa a decência do espaço público. As pessoas decentes afastam-se da política porque não estão para ser difamadas e caluniadas; as pessoas decentes afastam-se dos debates públicos porque não estão para ser insultadas e vexadas; as pessoas decentes afastam-se dos negócios com o Estado porque não estão para ser suspeitadas; as pessoas decentes afastam-se das suas profissões de grande relevo social (professores, juizes, médicos) porque não estão para ser desautorizadas e desrespeitadas. No espaço público fica apenas o povo e aquilo que de pior existe no povo - a indecência fruto da sua radical falta de julgamento.
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