27 fevereiro 2009

a galinha


A teoria que tenho vindo a desenvolver acerca da sociedade de tradição católica e da sociedade de tradição protestante visa explicar os grandes traços que caracterizam estas duas culturas, com o fim de prever a sua evolução, e em particular, como cada uma delas reage à imposição de instituições que são próprias da outra. Neste sentido, trata-se de uma teoria macro-sociológica, que visa explicar e prever grandes factos, grandes tendências, grandes reacções e grandes contradições. Ela não visa explicar pequenos factos, por exemplo, porque é que o Senhor Joaquim de Cinfães todos os dias se junta com os amigos à mesma hora no Café Central a jogar o dominó.
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O poder de uma teoria mede-se pela sua capacidade de explicação dos grandes factos ou tendências que ela visa apreender, e pela sua capacidade de previsão acerca desses grandes factos ou tendências. Por isso, eu considerei um teste à capacidade explicativa da minha teoria dar resposta a esta questão formulada por um leitor.
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É um facto geralmente reconhecido, e notado por muitos autores, a tendência que os portugueses têm para admirar aquilo que é estrangeiro, em detrimento do seu próprio país. Este característica não é sequer distintamente portuguesa, mas verifica-se, em maior ou menor grau, noutros países católicos, como a Argentina, o Brasil, a Espanha, a Itália ou o Perú. A admiração não se exprime, porém, em relação a quaisquer países, como a Tailândia, o Uganda, o Taiwan ou o Senegal. Exprime-se invariavelmente em relação a países de cultura portestante, como a Inglaterra, os EUA, o Canadá, a Suécia, a França, a Suíça, a Alemanha, e, mais recentemente, até a Finlândia. Além disso, trata-se de uma admiração que não é retribuída.
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Por isso, a questão posta pelo leitor está perfeitamente colocada. Porque é que as pessoas dos países C têm tanto admiração e apreço pelos países P, enquanto que a recíproca não é verdadeira? A resposta: por causa das ideias centrais que dominam as suas respectivas culturas, a ideia de justiça no caso dos países P, a ideia de verdade no caso dos países C.
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Começo pelos países C. Nestes países, a cultura ganha a sua unidade em torno da ideia de verdade. Um dos atributos da verdade é que ela é, às vezes, inconveniente, outras desagradável, senão mesmo muitas vezes cruel: "Vou morrer um dia", "Sou defeituoso, nasci sem uma perna", "Sou pobre", Sou um estudante medíocre", "Roubaram-me a carteira". A verdade só às vezes é conveniente, agradável ou justa.
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Nos países P, ao invés, a ideia que une a sua cultura é a ideia de justiça (fairness): "Na fila do supermercado, ninguém me passou à frente" - justo. "Na eleição do presidente, o meu voto teve tanto peso como o dos outros" - justo. "Comprei túlipas, e o produtor vendeu-mas, ao preço de 15 euros cada uma" - justo. "Os governantes do meu país não se aproveitam da situação para enriquecer" - justo. "Ninguém me pressionou para votar no Partido X" - justo.
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A verdade é, por vezes, inconveniente, outras vezes desagradável, às vezes mesmo cruel. A justiça nunca é. Daí que nos países de tradição católica, as pessoas aparentem geralmente uma atitude séria, por vezes carregada e triste que é a atitude própria de quem transporta no espírito muitas verdades desagradáveis e se sente mal consigo próprio e com os outros à sua volta. Pelo contrário, nos países de tradição protestante, as pessoas aparentam geralmente uma atitude despreocupada, leve e alegre, que é a atitude própria de quem não carrega fardo nenhum e se sente bem consigo e com os outros à sua volta.
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A sedução que os países protestantes exercem sobre os portugueses, e mais geralmente sobre os países de tradição católica é, portanto irresistível. Nesses países tudo parece fácil, simples, descontraído, alegre e, sobretudo, justo. Todos podem exprimir livremente aquilo que pensam sem que alguém os repreenda ou penalize Em Portugal, pelo contrário, tudo é difícil, complexo, tenso, pesado, às vezes verdadeiro de mais para ser suportável, e um país onde pensar alto é frequentemente um crime. Julgando assim pelas aparências, que são as aparências do espaço público, e sem penetrar no conhecimento profundo desses países e da sua esfera privada, a propensão do português e, mais geralmente do homem de cultura católica, para considerar que a "a galinha da minha vizinha é melhor que a minha" aparece como sendo perfeitamente compreensível.
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Tanto mais quanto é certo que esta atitude não é retribuida, e o americano, o inglês ou o alemão, julgando Portugal, Espanha, o Brasil, a Itália ou a Venezuela, pelas mesmas aparências do espaço público destes países, sentem por eles uma atitude de pronta rejeição: "A senhora que passa à frente da criança na fila do supermercado" - injusto; "O cacique local que chantageia os residentes para votarem nele" - injusto; "O governante que usa o seu lugar para enriquecer" - injusto. "O preço da gasolina que é mais impostos que custo do petróleo" - injusto. "A moradia de luxo situada no meio do bairro pobre" - injusto. "O insulto desbragado do leitor ao autor do blogue" - injusto. Como é possível viver num país destes? Certamente que não para um alemão um americano, um inglês, um sueco ou um finlandês que, em certo sentido, vive obcecado pela ideia de justiça.
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É claro que quando o português e, mais geralmente, o homem de cultura católica, vai para além das aparências públicas e procura conhecer a esfera privada dos países protestantes - o que em geral supõe viver num desses países durante algum tempo -, as suas relações na família, no círculo de amigos, na vizinhança e no emprego, a ida ao restaurante e à discoteca, as relações interpessoais mais íntimas, o seu rigorismo e intolerância nas pequenas coisas da vida, ele acaba por reconhecer que os benefícios da esfera pública são largamente anulados, senão mesmo suplantados, pelos defeitos que ele vê na esfera privada. O seu verdicto final em relação a eles é: "São países onde há justiça e equidade, mas são países onde as pessoas e as coisas não são verdadeiras e genuínas".
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O oposto ocorre quando um americano se dispõe a conhecer mais de perto a sociedade portuguesa, agora na sua esfera privada - o que em geral exige viver nela durante algum tempo. Passado o choque inicial e o horror que lhe inspira a esfera pública, onde ele vê injustiças a cada esquina, ele vai ficar surpreendido pela enorme humanidade das pessoas nos seus círculos privados da família, do emprego, dos amigos e da vizinhança; pelo seu extraordinário liberalismo na forma de pensar e de fazer as coisas da vida; ele vai concluír, enfim, que esta é uma sociedade, onde é possível fazer tudo e à maneira de cada um, até cometer excessos, que ninguém o leva preso. O horror da esfera pública tende a ser compensado, senão mesmo anulado, pela qualidade e os prazeres da esfera privada. O seu veredicto final será: "É uma sociedade injusta, mas a qualidade das pessoas e das coisas é extraordinaria".
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Porém, a maior parte daqueles que fazem opinião num país, como os seus intelectuais, não emigram. Em Portugal, aqueles que diariamente invocam nos jornais o civismo dos ingleses, a qualidade do serviço público de saúde canadiana, a excelência de organização das escolas públicas na Finlândia, a liberdade de expressão académica nos EUA, para denegrirem os seus próprios concidadãos e as suas próprias instituições, esses, então, não emigram de certeza. E por muito boas razões, que são aquelas que acabei de expôr.
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Pelo contrário, eles conhecem esses países, ou através de leituras, ou de visitas turísticas, ou de estadias breves de trabalho, e portanto só tomam contacto com a sua esfera exterior ou pública, não conhecem mais nada, em particular, não possuem o conhecimento íntimo dessas sociedades que só se adquire vivendo nelas o seu dia-a-dia por um período prolongado. Acresce que, sendo homens e mulheres de cultura católica e, portanto, possuindo uma péssima qualidade de julgamento, eles tendem apregoar aos quatro ventos que "a galinha da minha vizinha é melhor que a minha", sem o conhecimento adequado da galinha da vizinha e, muitas vezes, sem sequer conhecerem a sua própria galinha.

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