A propósito da cultura universitária em Portugal, em comparação com a cultura universitária de um país protestante, que tenho vindo a tratar em posts recentes, gostaria de contar um episódio que ficou para mim memorável. Mas não apenas para mim. Foi em meados dos anos 80 e o tema é - o copianço.
Eu tinha passado oito anos no Canadá, onde os estudantes não copiam. E não copiam porque seriam prontamente denunciados pelos colegas ao professor, e arriscavam-se a ser expulsos da universidade sem apelo nem agravo. Por isso, durante os exames, eu estava habituado a sair da sala, ir tomar café, às vezes ler o jornal, e só voltar perto do fim do exame. Tanto mais que também não existe lá o hábito de os estudantes pedirem explicações ao professor sobre as perguntas durante o exame (e que é uma forma de lhe tentarem extrair informação sobre as respostas).
Foi assim desaculturado que regressei a Portugal. Apanhei logo uma turma do primeiro ano, mais de cem alunos, que se sentavam apinhados num anfiteatro, ombro-a-ombro. As aulas decorreram normalmente, até chegar a altura da Frequência. Eu lembro-me vagamente de, uns dias antes, no meio da aula, alguns alunos me perguntarem se a Frequência seria realizada naquele anfiteatro, ao que terei respondido com toda a naturalidade:
-Claro...
No dia da Frequência, eles entraram, sentaram-se, comprimidos ombro-a-ombro como de costume, eu distribuí os exames, e saí, talvez para tomar café, ler o jornal ou conversar com algum colega no corredor. Terei voltado à sala trinta a quarenta minutos depois, e estava tudo a decorrer normalmente. Quando chegou a hora, recolhi os exames e trouxe-os para casa.
Dias mais tarde sentei-me a corrigir as provas. Volta-não-volta, comecei a notar que, aos pares, as respostas de um aluno se repetiam exactamente nas do aluno seguinte. Pensei: "Estes artolas, não só são uns vigaristas como são uma cambada de vigaristas incompetentes. Vão ter de apanhar, não pela vigarice, mas pela incompetência."
Na realidade, no meio de mais de cem alunos, eles provavelmente não seriam apanhados se, tendo copiado aos pares, não tivessem entregue os exames aos pares, de tal forma que um era a cópia do anterior. No final do processo, eu tinha posto de lado catorze pares de exames e, quando foi de publicar as notas, não publiquei as desses vinte e oito alunos.
Na aula de recomeço, não me dei por achado, nem falei no assunto. Dei a aula e, à saída, fui cercado por um grupo de alunos. Queriam saber porque é que as notas deles não tinham saído. O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:
-Não publiquei as vossas notas porque me pareceu haver semelhanças nos vossos exames.
-O Professor está a dizer que a gente copiou?
(Eles queriam neste momento puxar-me para a peixeirada portuguesa: copiou... não copiou...)
-Não, eu nunca faria uma coisa dessas. Eu presumo que vocês são pessoas sérias, ainda por cima jovens, e nunca alegaria um crime de plágio a vosso respeito. Por isso, aquilo que fiz foi enviar os vossos exames para o Conselho Científico...
(Silêncio)
-Como sabem, se se provar que houve fraude da vossa parte, até podem ser expulsos... Mas isso será o Conselho Científico a decidir, não eu ...
-Porque eu, no Conselho Científico, até sou o mais novo e o mais inexperiente ... Olhem o Presidente até vai ali a passar ... é aquele senhor vestido de escuro ...
Eu tinha passado oito anos no Canadá, onde os estudantes não copiam. E não copiam porque seriam prontamente denunciados pelos colegas ao professor, e arriscavam-se a ser expulsos da universidade sem apelo nem agravo. Por isso, durante os exames, eu estava habituado a sair da sala, ir tomar café, às vezes ler o jornal, e só voltar perto do fim do exame. Tanto mais que também não existe lá o hábito de os estudantes pedirem explicações ao professor sobre as perguntas durante o exame (e que é uma forma de lhe tentarem extrair informação sobre as respostas).
Foi assim desaculturado que regressei a Portugal. Apanhei logo uma turma do primeiro ano, mais de cem alunos, que se sentavam apinhados num anfiteatro, ombro-a-ombro. As aulas decorreram normalmente, até chegar a altura da Frequência. Eu lembro-me vagamente de, uns dias antes, no meio da aula, alguns alunos me perguntarem se a Frequência seria realizada naquele anfiteatro, ao que terei respondido com toda a naturalidade:
-Claro...
No dia da Frequência, eles entraram, sentaram-se, comprimidos ombro-a-ombro como de costume, eu distribuí os exames, e saí, talvez para tomar café, ler o jornal ou conversar com algum colega no corredor. Terei voltado à sala trinta a quarenta minutos depois, e estava tudo a decorrer normalmente. Quando chegou a hora, recolhi os exames e trouxe-os para casa.
Dias mais tarde sentei-me a corrigir as provas. Volta-não-volta, comecei a notar que, aos pares, as respostas de um aluno se repetiam exactamente nas do aluno seguinte. Pensei: "Estes artolas, não só são uns vigaristas como são uma cambada de vigaristas incompetentes. Vão ter de apanhar, não pela vigarice, mas pela incompetência."
Na realidade, no meio de mais de cem alunos, eles provavelmente não seriam apanhados se, tendo copiado aos pares, não tivessem entregue os exames aos pares, de tal forma que um era a cópia do anterior. No final do processo, eu tinha posto de lado catorze pares de exames e, quando foi de publicar as notas, não publiquei as desses vinte e oito alunos.
Na aula de recomeço, não me dei por achado, nem falei no assunto. Dei a aula e, à saída, fui cercado por um grupo de alunos. Queriam saber porque é que as notas deles não tinham saído. O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:
-Não publiquei as vossas notas porque me pareceu haver semelhanças nos vossos exames.
-O Professor está a dizer que a gente copiou?
(Eles queriam neste momento puxar-me para a peixeirada portuguesa: copiou... não copiou...)
-Não, eu nunca faria uma coisa dessas. Eu presumo que vocês são pessoas sérias, ainda por cima jovens, e nunca alegaria um crime de plágio a vosso respeito. Por isso, aquilo que fiz foi enviar os vossos exames para o Conselho Científico...
(Silêncio)
-Como sabem, se se provar que houve fraude da vossa parte, até podem ser expulsos... Mas isso será o Conselho Científico a decidir, não eu ...
-Porque eu, no Conselho Científico, até sou o mais novo e o mais inexperiente ... Olhem o Presidente até vai ali a passar ... é aquele senhor vestido de escuro ...
(e apontei para o Professor Silva Cunha, ex-ministro de Salazar, que por acaso passava no átrio).
E fui-me embora.
Nos dias seguintes, cada vez que entrava na Universidade, tinha alunos à minha espera a pedirem-me para falar comigo, mas agora individualmente. A mensagem era invariavelmente a mesma, umas vezes explícita outras implícita: "Quem tinha copiado não era ele, era o colega". Enquanto ouvia as explicações, várias vezes repetidas, pensava: "Estes parolos, tão novinhos ainda, além de vigaristas incompetentes, são também cobardes e bufos...".
Eu respondia-lhes que agradecia as explicações, mas que a minha formação era de universitário, não de polícia, e que o assunto já não estava nas minhas mãos. Os exames estavam no Conselho Científico e seria o Conselho Científico a decidir. E acrescentava:
-Eu farei tudo o que puder em vossa defesa ... não gostaria que um aluno meu fosse penalizado por uma falta que não cometeu ... mas quem vai decidir é o Conselho Científico ... uma parte dos seus membros são pessoas muito austeras ... do tempo do Salazar ...
À medida que os dias iam passando, o pânico ia-se instalando neles. Eu, quando questionado sobre o assunto, mantinha o discurso anterior. Até que um dia vieram em grupo ter comigo. Vinham-me pedir ( na realidade, suplicar) que retirasse os exames do Conselho Científico.
-Então e o que é que vocês pretendem que eu faça quanto às notas...?
-Bem ... a gente repete a Frequência em 2ª Época ...
-Portanto, vocês aceitam ficar sem nota nesta Frequência?
Acenaram que sim com a cabeça.
-Pronto, sendo assim está aceite da minha parte ... vocês ficam sem nota. Está acordado.
(Enquanto selava o acordo apertando a mão a cada um deles)
-E o Professor tira os exames do Conselho Científico?...
-Não ... isso eu não posso fazer.
-Não pode?!
E fui-me embora.
Nos dias seguintes, cada vez que entrava na Universidade, tinha alunos à minha espera a pedirem-me para falar comigo, mas agora individualmente. A mensagem era invariavelmente a mesma, umas vezes explícita outras implícita: "Quem tinha copiado não era ele, era o colega". Enquanto ouvia as explicações, várias vezes repetidas, pensava: "Estes parolos, tão novinhos ainda, além de vigaristas incompetentes, são também cobardes e bufos...".
Eu respondia-lhes que agradecia as explicações, mas que a minha formação era de universitário, não de polícia, e que o assunto já não estava nas minhas mãos. Os exames estavam no Conselho Científico e seria o Conselho Científico a decidir. E acrescentava:
-Eu farei tudo o que puder em vossa defesa ... não gostaria que um aluno meu fosse penalizado por uma falta que não cometeu ... mas quem vai decidir é o Conselho Científico ... uma parte dos seus membros são pessoas muito austeras ... do tempo do Salazar ...
À medida que os dias iam passando, o pânico ia-se instalando neles. Eu, quando questionado sobre o assunto, mantinha o discurso anterior. Até que um dia vieram em grupo ter comigo. Vinham-me pedir ( na realidade, suplicar) que retirasse os exames do Conselho Científico.
-Então e o que é que vocês pretendem que eu faça quanto às notas...?
-Bem ... a gente repete a Frequência em 2ª Época ...
-Portanto, vocês aceitam ficar sem nota nesta Frequência?
Acenaram que sim com a cabeça.
-Pronto, sendo assim está aceite da minha parte ... vocês ficam sem nota. Está acordado.
(Enquanto selava o acordo apertando a mão a cada um deles)
-E o Professor tira os exames do Conselho Científico?...
-Não ... isso eu não posso fazer.
-Não pode?!
(o pânico tinha atingido o máximo)
-Não... Porque eles nunca lá estiveram... Estiveram sempre em minha casa.
Ainda hoje, mais de vinte anos depois, eu sou aproximado por homens e mulheres de cerca de quarenta anos que me vêm cumprimentar na rua e, meio envergonhados, me dizem,
-Professor ... eu fui seu aluno ... e sou um daqueles ...
-Não... Porque eles nunca lá estiveram... Estiveram sempre em minha casa.
Ainda hoje, mais de vinte anos depois, eu sou aproximado por homens e mulheres de cerca de quarenta anos que me vêm cumprimentar na rua e, meio envergonhados, me dizem,
-Professor ... eu fui seu aluno ... e sou um daqueles ...
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A lição foi para a vida.
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