28 janeiro 2009

Livra!


As investigações em curso no Banco Privado Português (BPP) conheceram mais um novo episódio. A gravidade da situação continua a aumentar e ontem entrámos no domínio da investigação policial. As acusações que serviram de mote às buscas de ontem incluem branqueamento de capitais, gestão danosa, desvio de fundos para "offshore", desvio de fundos para contas de terceiros e enriquecimento indevido. No fundo, o BPP está a ser acusado de quase todos os crimes que podem ser imputados à actividade ilícitia de um qualquer banco. Tudo isto acontece uns dias depois de Fernando Ulrich, presidente do BPI, o maior credor de todos os bancos que participam no consórcio de bancos que se propunha salvar o BPP, ter lançado a mais grave acusação de todas: que este não tinha contabilidade organizada. Portanto, vamos por pontos.

Primeiro, o branqueamento de capitais. Existem regras claras quanto à entrega de valores em numerário (cash). Sempre que excede certo montante (12.500 euros), a entrega tem de ser acompanhada de um documento que identifique e ateste a origem desse dinheiro. Ou seja, a norma exige ao banco o conhecimento detalhado da actividade profissional do beneficiário da conta e, assim, todas as entregas em numerário que resultem de actividades ilícitias (tráfico de droga, armas ou outro crime qualquer) devem ser rejeitadas pelo banco. Esta particularidade da lei é delicada e só existe devido ao sigilo bancário. Por uma simples razão: se o sigilo bancário não existisse, ou se pudesse ser levantado facilmente em caso de suspeita criminal, os bancos não precisavam, eles próprios, de ser polícias. Porque convenhamos, o serviço de custódia que os bancos exercem não é compatível com a ideia de mandar embora um potencial cliente. Muito menos com a denúncia desse mesmo cliente. Por isso, esta suspeita de branqueamento de capitais, sendo muito conveniente, provavelmente, teria de ser aplicada a todos os bancos portugueses e não apenas ao BPP. Em particular, todos os bancos portugueses que nos últimos anos foram em busca do eldorado angolano.

Segundo, a utilização de "offshores". A forma mais arguta de branquear capitais passa por este tipo de jurisdições. Há, por esse mundo fora, "offshores" de primeira e "offshores" de segunda. Entre os primeiros, contam-se a Suíça e o Luxemburgo. Entre os segundo, há vários mas os mais proeminentes talvez sejam as Ilhas Caimão, as Ilhas Virgens, o Liechtenstein, o Mónaco, Gibraltar, Andorra, entre outros lugares mais ou menos exóticos. A diferença entre uns e outros diz respeito apenas à sofisticação e reputação dos bancos lá estabelecidos, sendo certo que todos os grandes bancos mundiais têm forte presença local em várias dessas zonas francas. Por exemplo, o sucesso do Luxemburgo reside no facto de ser o maior "backoffice" bancário de toda a Europa, onde vários grandes bancos internacionais abrem contas numeradas para clientes e onde, ao mesmo tempo, concentram boa parte dos seus serviços administrativos. Mas se, pelo contrário, formos a Gibraltar, provavelmente, encontraremos apenas umas quantas caixas postais e uns tantos testas de ferro. Acontece, contudo, que em quase todos os "offshore" (de primeira e de segunda) existe uma cultura de "no questions asked" que se sente não só nos bancos como nos aeroportos e afins e que, a par da reduzida fiscalidade que oferecem aos seus clientes, constituem as suas vantagens competitivas face a jurisdições mais restritas. Ora, o BPP opera em algumas dessas zonas francas, tal como todos os outros bancos portugueses.

Terceiro, a contabilidade. O BPP era um banco cuja estrutura, ao contrário do que sucedia com o BPN, era relativamente simples. Envolvia o banco, a holding que detinha o banco e os veículos especiais (SIV's) criados para tomar participações em entidades terceiras. A estratégia era também muito simples: captar dinheiro junto de clientes, que pudesse ser canalizado para estes veículos e que permitisse depois a tomada de participações no BCP, na Mota Engil, na Brisa, entre outros. No processo, o banco também emprestava dinheiro aos veículos que, por sua vez, era obtido através de empréstimos tomados junto de outros bancos (como o BPI, o Citigroup, o JP Morgan, entre outros) em que as garantias eram os próprios títulos accionistas entretanto adquiridos. Portanto, o dinheiro dos clientes, alavancado pelo banco, estava nos SIV's. Assim, será que, como diz Fernando Ulrich do BPI (o maior credor do BPP), estamos perante um caso de contabilidade ausente? Sinceramente, não vejo como - o dinheiro está nos SIV's. O que acontece é que estes SIV's estão registados fora do balanço, uma coisa muito diferente do que não ter contabilidade organizada, porém, ao abrigo de normas contabilísticas internacionalmente aceites na banca e praticadas por todos os bancos mundiais.

O problema do BPP sucedeu quando os mercados destaram a cair levando à desvalorização dos SIV's, à renegociação das linhas de financiamento com outros bancos e à implosão da sua política comercial que, defendida por contratos de gestão juridicamente artilhados, vendia aplicações especulativas como depósitos a prazo. Enfim, já aqui defendi a irrelevância do BPP no sistema bancário português e a sua influência nula sobre o risco de crédito da República Portuguesa. O banco pura e simplesmente não devia ter sido intervencionado. É isso que todos os bancos pertencentes ao consórcio que se propunha salvar o BPP estão a concluir. De resto, dadas as inúmeras acusações lançadas ontem sobre o BPP, a probabilidade de que nenhuma se concretize tornou-se agora muito baixa. Ou seja, está aberto o caminho para que o Banco de Portugal se decida pela liquidação do BPP. Quanto ao consórcio salvador que, entretanto, se endividou com o benefício resultante do aval do Estado, é possível que esses bancos utilizem parte dessa liquidez para outro fim qualquer. E, no final, provavelmente, ainda repartirão os poucos activos que sobrarem. Do mal o menos!

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