27 janeiro 2009

de dividir-se em dois


"Se ... quisermos resumir numa síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo.
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O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento dela - em segui-la, pois, mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
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A síndrome provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
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Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do Orpheu, disse a Sá-Carneiro: 'Você é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa você é vítima da sua educação portuguesa. Você admira Paris, admira as grandes cidades. Se você tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si'.

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção... Se alguma tendência têm os criadores da civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam... O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.

É na incapacidadec de ironia que reside o traço mais profundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz.
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Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam 'detachment' - o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele 'desenvolvimento da largueza de consciência' em que ... reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não ser provinciano.

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queiroz ..."
(Fernando Pessoa, "O Provincianismo Português" (1928), em Richard Zenith et. al. (orgs.), Obra Essencial de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, vol. 3, pp. 374-5)

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