26 novembro 2008

o erro do liberalismo

Um magnífico texto do Corcunda, a quem agradecemos ter aceitado o convite de o escrever no Portugal Contemporâneo:

1. Liberalismo como Ideologia

Ser liberal não é um erro. A liberalidade é uma virtude clássica, que consiste em estar liberto da prisão da materialidade, da posse e é uma característica essencial da caridade cristã. A liberalidade enquanto virtude corresponde ao reconhecer das necessárias limitações do Homem, principalmente no reconhecimento de que para exista virtude é necessária uma existência do outro e de uma esfera que escapa à esfera de acção do próprio. Não possuir liberalidade significa desejar o controlo sobre tudo (mais do que se necessita). A virtude é quase impossível no homem que nada tem, ou no que tem mais do que tem capacidade para administrar. O erro está, como sempre, no “ismo”. Quando uma virtude se desprende do seu enquadramento geral e das finalidades que a enquadram, cria-se um “cancro” moral e espiritual, absolutizando-se o parcial e parcializando-se o real e absoluto. De uma aceitação das limitações de si, o “ismo” da Liberdade passou a fazer a litania da independência da individualidade, face à comunidade. De maleita semelhante enfermou o Fascismo, uma apologia do heroísmo (da andrea grega ou virtus romana) que subordinou a Justiça de forma a que a acção se tornou mais importante do que as suas finalidades. Desse mal nasceu o Comunismo ao subordinar a Justiça ao desejo de igualdade, que sem a orientação desta primeira, os seus limites e inspirações, se transforma num desejo impossível (o socialismo utópico) ou um despotismo central sem referencial (socialismo e comunismo). Dessa recusa em aceitar o lugar da individualidade numa ordenação superior, como as células cancerígenas que não reconhecem a autoridade da estrutura genética para lhes limitar o crescimento e lhes impor uma função, nasce o Liberalismo. Este, como as outras ideologias, procede do Cristianismo e do anseio de liberdade fundamental que a esta corresponde, mas amputa-a em metade, esquecendo que com o livre-arbítrio vem a Salvação ou a Condenação, o Bem ou o Mal e a consequente necessidade de repressão moral, espiritual ou política.
A moralidade liberal é uma moralidade infantil, que não se preocupa com o “dever”, mas com o “poder”, como uma criança que procedeu mal, mas apenas pretende fugir à punição.


2. Liberalismo como Arbitrariedade

Um reflexo do carácter ideológico do Liberalismo é a forma como a sua argumentabilidade pressupõe um acto de corte da realidade a que é imposto um elemento volitivo, axiomático e imperscrutável. Observamos a história do Liberalismo e deparamos com a constante introdução de elementos arbitrários nas diferentes filosofias, que provém de uma ressaca do elemento de Bem, da finalidade última da acção humana e ordenadora da existência humana, que na filosofia moderna é substituída por um conjunto de axiomas insustentáveis em termos filosófico-morais.
Maquiavel, mestre do Mal, (como lhe chamou Leo Strauss) reduz o Homem à infantilidade. Torna-o senhor do universo, mas escravo dos seus desejos, que dota de insondabilidade. O desejo torna-se guia da acção humana, mas não sem transformar a relação pai-filho numa mera questão de poder, dada a insondabilidade dos desejos conflituantes de uns e outros. Numa concepção de vida em que as finalidades são incomensuráveis, a relação entre pais e filhos não é senão uma relação forte-fraco e o louco é apenas alguém que viu o seu sistema de valores coarctado pelos outros ou pela desadequação deste à submissão dos outros (falta de vertú). Se isto não é uma submissão da realidade à vontade particular, nenhuma infantilidade mais pode ser censurável, nenhum acto de bondade será mais possível.
É claro que esta insondabilidade das finalidades tem fortes ressonâncias protestantes (Maquiavel é uma das mais fundamentais vozes do Renascimento) e a institucionalização deste princípio vem a ser consagrada pelo “livre-exame”, que virá a culminar no destronar do Bem às mãos da falácia materialista e na elaboração das teorias contratualistas da comunidade política.
É aqui que o liberalismo encontra uma divisão essencial. Ou o liberal justifica a sua liberdade nos argumentos do Protestantismo ou ao tomar o argumento secular entra num domínio de arbitrariedade individual. O contratualismo de Locke é um exemplo dessa distinção. Locke escreve sobre a passagem do Estado-de-Natureza à formação da sociedade e sobre a forma como esta terá de ser convertida numa preservação dos direitos originários no segundo “estádio”, o político. Ora isto passa muitas vezes por um argumento neutro, objectivo ou secular, o que é a mais descarada das falsidades. Locke, ao contrário de muitos dos seus sucessores, tinha perfeita consciência de que a Liberdade (autonomia individual em tudo o que não conflitua com a propriedade) que defendia só sobreviveria num sistema em que esta se encontrasse metafisicamente protegida. Inspirado pela sua concepção religiosa elaborou um sistema de propriedade que favorecia a autonomia individualista e materialista (produto humano), a pedra-de-toque da sua visão religiosa protestante e que sabia ser incompatível com a visão Cristã Católica.
O mesmo se pode dizer dos argumentos para a autonomia de Kant, que são um dos expoentes máximos do protestantismo vertido para a filosofia. Crendo na autonomia da sua razão, Kant cria um conjunto de elementos de pensabilidade sobre a Verdade que, apesar de apresentados como elementos sustentáveis independentemente de Deus, não subsistem sem as pias finalidades do protestantismo.
Por outro lado existem os que não aceitando a imperatividade da concepção metafísica-religiosa, julgam poder, através de elementos meramente seculares ou de preferências acidentais, condicionar a existência dos outros a uma submissão às suas próprias preferências. São os que afirmam as auto-evidências e os factos: a primazia do medo da morte violenta, a crença na interacção espontânea dos agentes económicos como forma maximizadora de recursos materiais ou da esfera individual. Estamos assim a enumerar preferências que são tão legítimas como quaisquer outras, uma vez que a Modernidade procedeu à eliminação dos critérios superlativos de distinção entre preferências (veja-se a incapacidade de Mill em afirmar a possibilidade de uma sociedade livre possuir uma hierarquia de bens que não as dos indivíduos) e que o Liberalismo só constrói a partir dessa “wasteland moderna”, que foi construída pela construção da incondicionalidade de Hobbes ou Bodin, em que as concepções de bem são subjectivadas. O falhanço rotundo da Modernidade deu-se por essa razão. Pela destruição de todo o critério, o liberalismo não pode fazer a sua própria defesa.
A arbitrariedade do Liberalismo vê-se nessas duas facetas que descrevi. O apear dos pressupostos trans-subjectivos do Cristianismo, como mera revolta, a Revolta Egofânica de Voegelin, do Eu contra o Transcendente (não se propõe uma visão das Escrituras, mas o seu livre-exame) é a revolta do Homem contra o Mundo que o transcende e ultrapassa. A fundamentação do Liberalismo enquanto mera preferência individual é apenas a aceitação do falhanço desse subjectivismo e o abraçar da política enquanto mera acção de domínio, onde nenhuma posição é melhor que outra. Nada menos que a “guerra de todos contra todos” que Hobbes se havia proposto a evitar.


3. O Problema Liberal – A Dicotomia Liberdade/Autoridade

O terreno sobre o qual o Liberalismo edifica a sua ordem política e moral é, para dizer o mínimo, movediço, porque é construído a partir de uma concepção religiosa que é falsa ou de uma experiência humana, que apesar de interessante em muitos aspectos, é incapaz de ter qualquer carácter vinculativo. Foi esse o problema que Edmund Burke se decidiu a expor, denunciando assim a totalidade do projecto político iluminista. Burke denunciou as várias assumpções modernas como prelúdio do Totalitarismo: um estado neutro, a política como mera construção humana, a capacidade de implementar uma moral que não seja a cristã.
Uma liberdade que não vem senão da vontade dos seus membros e não se encontra inscrita na “ordem-das-coisas”, uma ordem natural, termina nos massacres e no fenómenos socialistas que a sociologia tocquevilliana descreveu com perfeição, simplesmente porque esta forma de liberalismo se apoia numa liberdade que não é, nem poderá nunca ser uma finalidade (se a autonomia individual fosse uma finalidade humana o objectivo do homem contemporâneo seria abolir o Código da Estrada e passar a decidir cada momento passado no trânsito com base numa vontade contratual entre os circulantes...). A Liberdade é, como Burke defendeu nas “Reflexões”, uma magnífica decorrência de uma justa ordem e não um conjunto de direitos dos indivíduos contra a Justiça. Não é, nem pode ser de forma alguma, uma prerrogativa dos homens contra a Autoridade, mas aquilo que o protege da injustiça.
Como descreveram alguns teóricos do comunitarismo, tais premissas autonomistas não são apenas desligadas de qualquer forma de identidade humana, como criam a impossibilidade de qualquer relação de justiça extra-subjectiva. E onde a justiça é uma representação de subjectividade, o titular do poder (o colectivo, os poucos, o monarca) tem o poder de alterar a ordem e de fazer da injustiça, justiça. Só através dos Direitos do Homem, uma carta cheia de direitos para os indivíduos, o Homem ganhou o direito de condenar inocentes, o político ganhou o direito a considerar que alguns dos seus membros não teriam direito a tribunais, o povo acreditou que a verdade seria aquilo que este tomasse por útil. É evidente que achar que a Democracia pode servir para instituir um sistema liberal, significa achar que esta tem legitimidade para o transformar num sistema socialista, comunista ou nazi. Por isso o liberalismo é um ideário tão débil. Defende a primazia do individual e a santidade da vontade humana, mas não encontra nenhuma boa razão para que não se sacrifique a autonomia à igualdade. Ao manter a questão ao nível da preferência individual, o liberalismo lança-se nas mãos do destino. Só num sistema de grande prosperidade ou onde se possa cercear a difusão de propostas sociais igualitárias, a propriedade e liberdade podem ser apresentadas como fundamento social.
Hoje as pretensões do jusnaturalismo liberal nada mais são que reflexos da sua própria insuficiência. A tentativa de fundar limites à vontade individual na própria racionalidade humana, não são mais do que “fait divers”. A Locke pergunta-se «porque não Hobbes?», sem qualquer prejuízo. Pergunta-se «porque razão não pode o Homem livre aceitar ser escravizado se isso lhe melhorar o nível de vida?», sem que seja possível algo superior a uma opinião reflexiva da experiência individual, a que a Modernidade tudo reduziu.


4. Resumindo

O Liberalismo tinha como pretensão a construção de uma ordem político-moral meramente humana e racional, originada da participação individual (democrática) e em que os pressupostos da vida social, cristalizados na expressão arbitrária “Direitos Humanos” (uma corruptela das prioridades políticas do Cristianismo) são defendidos de forma instantânea e benevolente pelos cidadãos. Milenarismo no seu melhor.
O resultado de tudo isto foi uma sociedade em que a racionalidade não tem uso (a maioria é o argumento último da política, ou o a verdade é remetida para o reduto da opinião), em que os valores são meros reflexos do poder dominante, e por isso inquestionáveis (quem já tentou escrever alguma coisa contra os Direitos Humanos sabe do que falo...) e em que a única concórdia se faz pela submissão cega ao Poder, que comporta a repressão de todos os outros.
É evidente que a neutralidade liberal, que tinha como objectivo encontrar o ponto objectivo que permitiria estabelecer uma nova justiça, não passa de mais uma proposta tão subjectiva como qualquer outra que tenha mera origem humana. Esta liberdade autonómica permanece repleta de significados metafísicos, sem os quais uma escolha entre liberdade, segurança, igualdade ou justiça é impossível.
Um falhanço monumental.

O Corcunda

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