26 março 2008

os problemas da constituição de 76

1. O texto constitucional português em vigor data, na sua versão original, do ano recôndito de 1976. Foi produto de uma Assembleia Constituinte eleita em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), isto é, no auge da radicalização da revolução do 25 de Abril de 1974, numa eleição ocorrida em 25 de Abril de 1975, que por pouco esteve para não acontecer. Sobre ela foram já realizadas sete revisões, sendo a última do ano de 2005.

2. A sua personalidade resulta exactamente do espírito do tempo em que foi feita. O preâmbulo, ainda hoje conservado, não deixa lugar a dúvidas: a Constituição visava as seguintes finalidades: «defender a independência nacional, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, estabelecer os princípios basilares da democracia, assegurar o primado do Estado de Direito democrático e abrir caminho para uma sociedade socialista». Ou seja, a CRP de 1976 define-se como um instrumento para a criação de uma «sociedade socialista». Daqui decorrem muitos dos seus defeitos ainda hoje sentidos, apesar de várias das revisões do seu texto lhe terem atenuado essa tónica.

3. Para todos os efeitos, a nossa Constituição é marcadamente ideológica e programática. Isto significa que ela não se limita a estabelecer uma determinada ordenação jurídica da forma de organização política da sociedade, como é característico do constitucionalismo liberal, mas que integra uma certa visão ideológica da ordenação social e política, bem como delineia um programa e um caminho de intervenção para a atingir.

5. Assim é de tal modo que, na sua versão original, a CRP privilegiava os sectores público e cooperativo da propriedade, diminuindo o sector privado que era tolerado em posição inferior aos dois citados. Nessa medida, e em conformidade com o seu cariz socialista, toda a ordenação económica da sociedade portuguesa foi pensada, apesar da propriedade privada, para privilegiar a propriedade pública. Assim também, é fixado um conjunto de direitos fundamentais de 2ª e 3ª geração, tipicamente decorrentes dessa mesma mentalidade. Entre eles, os que constam dos actuais artigos 55º e seguintes, sobre os «Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores», e os «Direitos e deveres económicos e sociais». Este elenco de supostos «direitos fundamentais» é hoje extraordinariamente limitadores de reformas políticas mais profundas.

6. Outras notas marcantes da mentalidade socialista e intervencionista da nossa Constituição, que ainda hoje perduram, são, por exemplo, as limitações impostas à participação activa na vida política dos cidadãos fora dos partidos políticos (art. 151, que impõe as candidaturas em listas partidárias à Assembleia Legislativa); a natureza unitária e centralista do Estado (art. 6º); a fixação de certos limites materiais da revisão (art. 288º), entre eles, «a forma republicana de governo» (al. b)); «os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais» (al. e)); «a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social da propriedade dos meios de produção» (al. f)); «a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista» (al. g)); «o sistema de representação proporcional» na designação dos titulares dos órgãos de soberania (al. h)); entre outros.

7. Torna-se assim evidente, que a CRP mantém hoje ainda a marca ideológica do momento em que foi feita, o que condiciona a evolução política do regime e mesmo até a expressão democrática da soberania. Esse é, desde logo, o seu primeiro e maior pecado.

8. Na verdade, uma Constituição política de uma comunidade tem por finalidade primordial a sua organização política, isto é, a escolha de um modelo de governo e a enunciação dos mecanismos fiscalizadores e que garantam os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Na origem do constitucionalismo moderno, isto é, no advento do constitucionalismo liberal oitocentista, a palavra «Constituição» era sinónimo de limitação do poder soberano do Estado, através da determinação dos direitos fundamentais dos cidadãos, da separação de poderes entre os órgãos do Estado, e da determinação de um sistema de governo com órgãos plurais e independentes entre si no exercício das suas funções.

9. Nesta altura, e ao longo de todo o século XIX, as Constituições não são programáticas, nem tão pouco os direitos fundamentais dos cidadãos excedem o que corresponde a uma ideia comum de direito natural. No século XX, a partir da Constituição de Weimar (1919) e acompanhando a eclosão do chamado Estado Social, as Constituições passaram a configurar-se como verdadeiros programas de intervenção política e social, espelhando uma visão ideológica da sociedade. É, também, a partir desse texto que os direitos fundamentais se passam a travestir de direitos políticos de recorte muitíssimo discutível, a que se usa chamar os «direitos fundamentais de 2ª e 3ª geração». Como são quase todos inexequíveis através da actuação do Estado, não só desacreditam a Constituição, como relativizam até a importância dos direitos fundamentais de 1ª geração, esses sim a merecer uma vigilância absoluta e inflexível do Estado, muitas vezes abrandada.

10. Desta perspectiva das coisas resultaram equívocos, como a nossa actual Constituição. Parece óbvio que nenhuma geração pode ter o direito de marcar ideologicamente uma comunidade e um País para além do seu próprio limite temporal. Um poder constituinte não pode ser vinculador na eternidade. E como uma Constituição não é um documento que se deva substituir em períodos breves de tempo, a única maneira de evitar situações comprometedores será esvaziá-la de conteúdo ideológico e programático, reconduzindo-a à sua natureza primordial de garante dos verdadeiros direitos fundamentais dos cidadãos, e de documento organizador e limitador do poder político. Enquanto isto não for feito em Portugal, para o que, de resto, será necessária uma verdadeira ruptura constitucional, a Constituição será factor de desagregação da comunidade, em vez de cumprir a função agregadora que lhe deveria assistir.

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