11 dezembro 2007

a consolidação da soberania

Picardias à parte, decorreu n' O Pasquim da Reacção, sobretudo neste e neste posts e nas respectivas caixas de comentários, um interessante debate sobre liberalismo e conservadorismo, em torno de assuntos como o Estado, a soberania, a ideia de poder na Europa medieval, o Constitucionalismo Inglês, e de autores como Oakeshott e Burke (de cuja obra o Corcunda é um profundo conhecedor). Nessa troca de opiniões, interviemos os dois autores dos dois blogues e um comentador do Pasquim, que assina como «Modernista», e que editou alguns interessantes comentários nas caixas desses posts. Julgo, contudo, que há muito ainda para dizer e debater, mesmo no reduzido âmbito dos blogues, sobre estes e outros aspectos conexos.

Entre outros, do ponto de vista liberal, há um que interessa particularmente: a criação da ideia de soberania e a transformação do poder público do período medieval para o Estado Moderno. Naturalmente que o liberalismo, sendo essencialmente uma filosofia sobre a natureza do poder e a limitação da soberania, se tem de preocupar com as razões históricas que levaram à transformação de um conjunto de poderes públicos difusos, dispersos e concorrentes entre si – o Papado, o Império e os Reinos emergentes – que caracterizam o período medieval, para o Estado Moderno, onde a crescente centralização régia do poder é a nota dominante.

Ora, se é certo que no feudalismo medieval o rei é essencialmente um «primus inter pares» que partilha o poder político com os seus iguais, parece-me também inequívoco que a centralização se inicia muito cedo, bem mais precocemente do que se costuma assinalar, e que só não foi concluída antes por falta de meios disponíveis. A necessidade dos reis medievais demarcarem o seu poder perante o Imperador, primeiro, e o próprio Papa, mais tarde, afirmando-se «(rex est) imperator in regno suo», evidencia bem a consciência (e a apetência) por uma autoridade que não podia ser meramente simbólica.

Por outro lado, a própria teorização da soberania régia e as suas características comummente reconhecidas, inicia-se, pelo menos, no fim do século XIII, provavelmente em 1283, nos Coutumes de Beauvaisis, de Phillipe de Beaumanoir. Aí pode já ler-se que «li rois est souverains par dessous tous et a de son droit la general garde de tou son royaume, par quoi il peut fere teus establissemens comme il li plest pour le commun porfit, et ce qu’il establist doit estree tenu (...) Et pour ce qu’il est souverains par desseur tous, nous le nommons quant nous parlons d’aucune souveraineté qui a li appartient». Esta perspectiva das coisas, já com um nível elevado de teorização (cujos elementos principais se manterão em definições futuras, por exemplo, na de Bodin), não terá sido imune à perspectiva de poder imperial que perpassava os textos justinianeus do Corpus Iuris Civilis, correspondentes à formulação imperial romana do conceito de soberania, recuperados no Ocidente, a partir dos idos do fim do século XI, começo do século XII.

Os elementos da soberania estão, todos eles, bem identificados naquelas passagens dos textos de Beaumanoir: o território, o poder supremo, a lei régia, o uso legítimo da força e o bem comum. Dificilmente se poderá, por isso, conceber um mundo medieval, pelo menos a partir do século XIII, imune à ideia de soberania e onde ela não fosse a preocupação política primordial. O processo de centralização e de consolidação do Estado Moderno terá sido, por conseguinte, o resultado natural desta tendência já mais do que patente naquela altura, e não propriamente a consequência de qualquer transformação profunda do curso da História, ocorrida em momento indeterminado.

De todo em todo, muito apreciaria ler o que pensam a este respeito o «Modernista» e o Corcunda, pelo que ponho o Portugal Contemporâneo à disposição do primeiro, acreditando que o Corcunda preferirá, se entender intervir, o seu próprio blogue, ainda que se o quiser fazer aqui, teremos muito gosto nisso.

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