Quando, em princípios dos anos 80, visitei pela primeira vez S. Francisco, um dos pontos fortes da minha agenda turística era visitar a célebre Castro Street. S. Francisco era então - e permanece ainda hoje - a capital gay da América, senão mesmo do mundo. Pela primeira vez, o poderoso lobby gay da cidade - constituído por gays oriundos de todo o país e emigrados para S. Francisco - fizera eleger um mayor gay.
A Castro Street era um ponto de atracção turística e eu lembro-me de ter contemplado o espectáculo com uma indiferença mal disfarçada comum a muitos turistas como eu cujo objectivo era o de observar os casais de homossexuais caminhando pela rua, um com a mão por cima do ombro do outro, beijando-se ocasionalmente, com a intimidade e cumplicidade próprias de um homem e de uma mulher.
Ainda que a cena se encontrasse também um pouco por toda a cidade, recordo-me que o balanço da minha visita à Castro Street foi mais ou menos assim: "Interessante. Nunca tinha visto tal coisa. Mas isto seria impossível em Portugal - e ainda bem", terei concluído então. Na altura, eu vivia há uns anos fora de Portugal, e passariam muitos anos - cerca de vinte - até que o termo gay passasse a ser pronunciado abertamente no país.
Eu continuo a pensar que é impossível que o Chiado, em Lisboa, ou a Avenida dos Aliados, no Porto, alguma vez possam ser uma réplica da Castro Street de S. Francisco. Mas não me atreveria hoje a fazer essa previsão com o grau de certeza que tinha há 25 anos atrás.
A cultura predominantemente protestante da América do Norte é uma cultura muito mais racionalista do que a cultura católica de Portugal. Naquela cultura todo o problema é trazido para o âmbito público e discutido no âmbito público. A maior parte da população - na América como em qualquer outra parte do mundo - possui um preconceito contra a homossexualidade - um preconceito que, como argumentei num post anterior, é perfeitamente racional.
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A partir dos anos sessenta, a homossexualidade tinha-se tornado um tema de discussão pública nos EUA e havia que encontrar uma solução ao problema A solução encontrada foi tipicamente anglo-saxónica - uma solução de compromisso. Reconhece-se explicitamente a homossexualidade (pelo caminho aceitando enfraquecer a norma até então vigente da heterossxualidade) e até se reserva um espaço para ela - a cidade de S. Francisco, como capital, e certas zonas de outras cidades. Mas quem quiser viver como homossexual vai ter de ir viver para lá. Se o meu julgamento não me engana, a homossexualidade passou então a ser muito menos tolerada em qualquer outra parte dos EUA, e a cidade de S. Francisco passou a ser o gueto mais visível dos homossexuais da América.
A cultura católica, como a portuguesa, vive muito mais de entendimentos implícitos do que de compromissos explícitos. Para as questões importantes da vida em sociedade, esta cultura - em lugar de procurar um entendimento explícito para as várias tendências existentes na sociedade - estabelece uma norma, que faz questão de afirmar em toda a sociedade e da qual dificilmente abdica - e a norma, nesta matéria, é a da heterossexualidade. Será que esta cultura não tolera desvios à norma?
Tolera-os e bem. Desde que os desvios permaneçam discretos e não tenham a pretensão de se afirmar explicitamente na sociedade, desafiando e ameaçando a norma prevalecente. Na realidade, sempre existiram homossexuais em Portugal e eles sempre viveram pacificamente no seio da população - nas cidades, nos bairros, nos empregos, nas famílias -, sem discriminação aparente e sem alguma vez serem guetizados.
Na minha opinião, seria bom, assim, que os homossexuais portugueses permanecessem discretos e pouco afirmativos em público, que não desafiassem em excesso a cultura que tão bem os tem tratado, tornando-se visíveis em demasia, reivindincando explicitamente direitos, ou passeando-se pelo Chiado ou pela Avenida dos Aliados com o mesmo à-vontade que eu observei em S. Francisco. Nesse dia, a cultura portuguesa não vai abdicar da sua norma para os reconhecer e, ao mesmo tempo, meter num gueto. Vai ressenti-los profundamente e reagir indignadamente contra eles.
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