Nas vésperas do referendo ao aborto, um bispo foi entrevistado sobre o assunto. Declarou-se favorável à situação então prevalecente, que era a da proibição legal do aborto, ao mesmo tempo que se mostrou largamente tolerante em relação aos abortos que eram praticados de modo clandestino.
As declarações do bispo levantaram então um coro de críticas, a mais importante das quais era a sua hipocrisia - o bispo tolerava abortos clandestinos e, não obstante, recusava-se a legalizá-los. Porque não, então, admiti-los aberta e legalmente (como o referendo viria a consagrar)?
Eu penso que o bispo tinha a posição certa, e que a posição errada foi a consagração legal do aborto e, em primeiro lugar, a realização de um referendo ao aborto. Existe uma norma na sociedade a este respeito, a qual é fundada sobre um princípio de primeira importância - o princípio não matarás -, e esta norma conduz directamente à ilegalização do aborto. Porém, os princípios valem como normas gerais que se aplicam à generalidade dos casos, mas não necessariamente a todos. E até o princípio não matarás admite excepções.
Porém, como é difícil a todos os cidadãos julgarem acerca das circunstâncias que justificam as excepções, elas só podem ser toleradas se se mantiveram discretas e fora do escrutínio da maioria. Tornar as excepções explícitas e trazê-las para o domínio público - mais ainda, procurar colocá-las no mesmo plano da norma social - é forçar o confronto social e desafiar a maioria o que, a prazo, significa invariavelmente a derrota, senão mesmo o esmagamento, da causa excepcional e minoritária.
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A tolerância da cultura católica exprime-se largamente fechando os olhos aos comportamentos que violam a norma social. Esta cultura, muito mais do que na cultura de inspiração protestante - mais propensa a trazer para o domínio público e da discussão racional todas as causas, incluindo as minoritárias - é uma cultura imensamente tolerante. Desde que não a forcem a abrir os olhos.
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