Provavelmente, uma das maiores dificuldades do liberalismo moderno é a de que ele assenta criticamente na ideia da natureza humana - uma ideia que foi abundantemente cultivada pelos moralistas escoceses do séc. XVIII.
A ideia da natureza humana pretende captar aquilo que de permanente e igual existe nos homens - o instinto da sobrevivência, a propensão para privilegiar o interesse próprio sobre o alheio, a tendência para valorizar o presente mais do que o futuro, o instinto da reprodução, a valorização do concreto mais do que o abstracto, etc.
Partindo destas premissas é possível construír, por argumento lógico-dedutivo, uma teoria de onde resultam certas conclusões inapeláveis - ou leis - acerca do comportamento humano e estudar em seguida as propriedades de uma sociedade baseada em tais premissas e em tais leis.
Provavelmente, o principal defeito - mas não o único - desta construcção teórica, que é às vezes admiravel do ponto de vista intelectual, é o de reduzir todos os homens a uma só dimensão, aquela dimensão onde todos eles são iguais - a sua natureza humana.
Ludwig von Mises, o pai do liberalismo moderno, foi um exemplo neste aspecto. O seu liberalismo é totalmente a-cultural e despersonalizado, e as pessoas do universo social que ele contrói só são pessoas porque todas elas possuem uma natureza humana, e, por isso mesmo, são pessoas todas iguais. Mises apresentaria e defenderia o seu liberalismo de igual modo perante uma assembleia de senadores em Nova Iorque, perante uma comunidade católica das Filipinas, ou perante os índios de uma tribo da Amazónia.
Esta construcção intelectual abstracta é certamente útil e interessante para descrever uma sociedade humana abstracta onde todas as pessoas são iguais - e iguais na sua natureza humana. Mas ela não serve para descrever, e certamente não descreve, nenhuma sociedade humana concreta.
Constitui, por isso, uma sério erro intelectual - e um perigo público iminente - procurar transformar aquela sociedade humana abstracta num modelo de sociedade e aspirar a dar-lhe realidade concreta, porque ao fazê-lo teria, inevitavelmente, de se dar cabo de tudo aquilo que num homem não é mera natureza humana.
Refiro-me à sua cultura - os modos de sentir, de fazer, de pensar e de agir - que ele herdou da comunidade onde nasceu - às vezes uma herança de milénios - e aos mistérios insondáveis da sua individualidade - as suas manias, os seus preconceitos, os seus medos, as suas taras, as suas obsessões, até o seu génio.
O liberalismo abstracto que não tem em conta a cultura de um povo e até as peculiaridades da personalidade humana não conduz a liberdade nenhuma. Pelo contrário, conduz à mais completa das opressões, porque vai obrigar a que todos os homens sejam iguais - e iguais na sua natureza humana.
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