Quando o Dragão e a zazie me sugeriram, numa espécie de corrente, que eu indicasse os dez livros que mais marcaram a minha vida colocaram-me um problema difícil. Eu estou agora em condições de indicar o primeiro e o último, por ordem cronológica, deixando a resposta aos restantes para mais tarde, quando a encontrar.
O primeiro livro que me influenciou fortemente, e pela negativa, era eu ainda criança, foi o catecismo da igreja católica, numa versão infantil e muito colorida do início dos anos sessenta, que era utilizado na catequese, na Igreja de S. João de Brito, em Lisboa.
Os meus pais não eram pessoas particularmente religiosas, menos ainda católicos praticantes, mas decidiram que todos os seus filhos deviam frequentar a catequese e fazer, pelo menos a primeira comunhão. Eu sou o segundo de quatro e o meu irmão mais velho já tinha estabelecido o precedente, fazendo a primeira comunhão e indo já a caminho da comunhão solene.
Chegara então a vez de a minha mãe me increver na catequese. Eu teria sete ou oito anos. Foi um desastre. Munido do catecismo, eu era agora suposto frequentar as aulas de catequese, às segundas, quartas e sextas, na Igreja de S. João de Brito, depois de saír da escola. Lembro-me das primeiras aulas, a ouvir a catequista e a olhar para o catecismo com anjos pintados a branco e amarelo. Nada daquilo entrava. Comecei a faltar e, em lugar de ir para a catequese, passei a ficar na rua a jogar à bola com os outros miúdos do bairro.
Chegado o final do ano, a catequista serviu-me o presente que eu merecia, informando-me que não me levaria a exame, por manifesta ignorância do catecismo. Este chumbo seria exemplar na minha vida - nunca mais tive outro.
Na escola, eu era um excelente estudante e, por isso, a coisa lá passou entre os meus pais sem grandes reprimendas - excepto a de que, para o ano, iria repetir a catequese até fazer a primeira comunhão. O novo ano lá começou e eu, repetindo o anterior, ia a uma aula e faltava a duas. Desconhecia, porém, que por uma combinação secreta entre a catequista e a minha mãe, eu estava agora a ser controlado. E num dia em que jogava à bola na rua, quando devia estar na catequese, olhei para o lado e deparei na berma do passeio com a mais indesejável das espectadoras - a minha mãe.
Na frente dos outros jogadores e perante o olhar descuidado de vários transeuntes, apanhei um enxame de tabefes que, se fosse hoje, teriam mandado a minha mãe directamente para a cadeia por maus tratos dados àquele seu pequeno meliante que desrespeitava as determinações maternas. É, claro, que olhando em retrospectiva, só se perderam aquelas que caíram no chão.
A partir daí nunca mais faltei à catequese, decorei o catecismo, passei brilhantemente o exame, fiz a primeira comunhão, mas nunca mais voltei à Igreja - excepto para casamentos, baptizados e funerais. E fiz tudo isto não por gosto, mas por obrigação (e medo, porque a minha mãe avisara-me que da próxima vez contaria tudo ao meu pai).
Olhando para trás e para a minha expressão na fotografia no dia da comunhão, deveria parecer óbvio a qualquer observador independente que aquela criança que estava ali nunca iria dar um bom católico. A aversão às orações e à doutrina repetida monocordicamente e sem chama, a humilhação do chumbo - o único na turma -, a cena dos tabefes, o medo e a revolta, e tudo isto por causa daquele pequeno livro de umas 30 ou 40 páginas e que eu detestava - o catecismo da igreja católica, naquela versão infantil.
Tendo, então, revelado o primeiro livro que influenciou a minha vida, passo agora a indicar o último. É o Catecismo da Igreja Católica, agora na versão oficial promulgada pelo Papa João Paulo II em 1993 e redigido por uma comissão a que presidiu o então cardeal Joseph Ratzinger.
Em cerca de oitocentas páginas está ali sintetizada, em forma admirável, dois mil anos de doutrinação feita por alguns dos melhores espíritos que a humanidade produziu. O Catecismo não trata apenas de religião, no sentido de teologia e liturgia, trata também de filosofia, política, moral, organização, economia, ciência, direito e até resistência armada.
Quem seguir aquele livro à risca vai, por certo, ter uma boa vida. O problema é segui-lo à risca, dado que os padrões são tão elevados. Porém, ao percorrer os seus 2863 artigos, é possível perceber um elemento que, embora subtil, é aquele que mais contribui para fazer da tradição católica uma tradição admirável de humanidade e tolerância. É que, embora a Igreja Católica exija muito dos homens, colocando os padrões muito elevados, na prática ela contenta-se com menos - às vezes bastante menos.
É esta tolerância ao pecado que torna as sociedades tocadas pela cultura católica mais humanas e mais doces de viver, quando comparadas com as sociedades onde predomina a cultura protestante do cristianismo. Nem podia ser de outro modo: uma instituição criada para tirar os pecados do mundo tem de ser muito tolerante em relação ao pecado, caso contrário perdia a sua razão de ser e extinguia-se.
Portugal, Espanha, Itália, toda a América Latina, com destaque para o Brasil - quando se deixam tocar pela sua cultura católica tradicional, em lugar de reagirem contra ela em acessos de jacobinismo - são exemplos de sociedades humanas e tolerantes, certamente em comparação com as sociedades predominantemente protestantes do norte da Europa e da América do Norte.
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