04 agosto 2007

Porquê?


Os princípios são regras de acção com as quais a humanidade, ou uma parte dela - como uma cultura ou uma civilização - se deu bem ao longo de séculos, às vezes milénios. As coisas são assim, e não de outro modo, porque milhões de pessoas, às vezes biliões, que viveram antes de nós, postas perante certas circunstâncias e um certo problema, acabaram por encontrar uma solução que a experiência demonstrou ser a melhor ou a menos má.

Os princípios são regras de acção perfeitamente racionais, contendo por vezes múltiplas racionalidades, e racionalidades baseadas na experiência de múltiplas gerações. Eles representam a sabedoria acumulada da humanidade, de uma geração ou de uma cultura. Porém, para quem não passou pelas circunstâncias e defrontou o problema, nem sempre é fácil descobrir a racionalidade, frequentemente as múltiplas racionalidades, imanentes num princípio, precisamente porque ele é baseado, não na razão apriorística, mas na razão experimental.

Quando Descartes declarou que não iria acreditar em nada que não fosse demonstrável pela (sua) razão - que ele pretendia universal -, ele estava a pôr em causa todo o saber acumulado da humanidade, fazendo-o passar pelo teste da sua própria razão. Não se tratava apenas de uma grande pretensão, passando um atestado de irracionalidade e incompetência a toda a humanidade que o precedeu. Tratava-se de um teste que irremediavelmente estava destinado a condenar todo o conhecimento herdado do passado, porque a razão de Descartes era uma razão apriorística, enquanto os princípios que vinham do passado estavam fundados em razões ditadas pela experiência.

Descartes acreditava que o universo era regido por leis matemáticas que podiam ser deduzidas a partir de princípios primeiros (axiomas) derivados da razão. Ele propunha-se chegar à verdade e fazer ciência sem sair de casa - na realidade, sem sair da cama, porque, segundo se diz, o melhor do seu pensamento era conseguido passando o dia na cama. Porquê? passou a ser a pergunta chave e a pergunta trágica nos países que ficaram submetidos à influência do pensamento cartesiano - Portugal e Espanha, mais do que a própria França, sendo muito menor a sua influência na Alemanha e na Inglaterra.

Não encontrando uma razão compreensível ao seu espírito, o qual operava preferentemente a partir da cama, para os princípios herdados do passado - porque os princípios são, em geral, o produto de múltiplas razões, e razões experimentais - rejeitou-os. Não encontrando uma razão plausível para que o mundo fosse como é, rejeitou-o também e abriu as portas à revolução. A partir de Descartes, e nos países sujeitos à sua influência, vão suceder-se as revoluções, as causas fracturantes, as ideias radicais, os homens prontos a mudar a sociedade de alto a baixo.

È justo dizer, neste ponto, que Descartes não foi um revolucionário e, em nenhum momento, pretendeu alterar a ordem social estabelecida. Mas os seus discípulos pegaram-lhe na palavra: Porquê?. E, na estreiteza da sua própria razão, não encontraram resposta satisfatória para que o mundo fosse como era, e não pudesse ser diferente e melhor. Rousseau foi o pai da revolução francesa, que depois gerou revoluções permanentes em Portugal, Espanha e nos seus descendentes na América Latina. Marx veio a seguir. E Ludwig von Mises, o pai do neoliberalismo e um cartesiano por excelência, gerará outra revolução se o seu pensamento não fôr contido.

Aquilo que une estes homens - Descartes, Rousseau, Marx, até Mises - é que não tiveram nenhuma experiência de vida, nunca ganharam a vida como qualquer ser humano normal - viveram quase sempre à custa dos outros. Foram eles, porém, que decidiram rejeitar por completo o passado e a experiência e se propuseram dizer à humanidade como é que ela havia de viver - e viver melhor, modernizar-se.

Descartes nasceu numa família católica, foi educado num colégio de jesuítas - La Flèche - e permaneceu um católico praticante até ao final da sua vida. Numa época de guerras religiosas entre católicos e protestantes, o seu pensamento foi vigorosamente combatido na Alemanha por Leibniz, na Inglaterra por Henri More (um amigo de Newton) e contido na própria França pela corrente huguenote. Em Portugal e Espanha - os países católicos por excelência do seu tempo - a sua influência foi considerável e permanece ainda hoje. Na reforma pombalina da Universidade (1772), a influência dos estrangeirados - Ribeiro Sanches, em particular, que viveu uma boa parte da sua vida em Paris - foi decisiva.

Em Portugal e Espanha, a cultura da intelectualidade passou a ser predominantemente a cultura cartesiana e adolescente do Porquê?, com a sua rejeição do passado, a sua contestação da autoridade, a sua insatisfação permanente, o seu apelo permanente à mudança (modernização) e, no limite, à revolução. Nenhum pensador como Descartes desferiu um golpe tão profundo no pensamento católico e nos países sujeitos à sua influência. Nem a Igreja Católica nem estes países conseguirão algum dia levantar-se de novo sem, primeiro, derrotarem Descartes e a cultura cartesiana do Porquê? que obtém respostas tiradas da cabeça de cada um, às vezes ainda na cama, como quem tira coelhos da cartola.

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