26 agosto 2007

Ordem espontânea: entre a Abelha e o Arquitecto





Só pode ser ignorância ou queda para a provocação desconhecer que Hayek nunca poupou na sua crítica os intelectuais que animados pelo racionalismo construtivista não se dão conta de que a nossa civilização, fruto da evolução de uma sociedade fechada para uma Sociedade ´Aberta´, não resultou (e a sua manutenção não depende, contrariamente ao que supõe Marcuse) nem da reposição do instinto nem do controle da razão, mas justamente do negar ao instinto e à razão as suas pretensões.



A opção não é, simplesmente, como, ao que parece, pretendia um antigo secretário-geral do Partido Socialista Francês, entre a Abelha e o Arquitecto. Tal opção deve ser denunciada como falsa não só porque o lugar do homem está mais entre esses dois extremos mas ainda porque os países do ´socialismo real´ mostraram que o entregar uma Sociedade aos desejos de uns tantos Arquitectos e Engenheiros sociais significou o ´limpar a tela´ das mesmas tradições e valores que no que Ocidente impediram a Vitória (trágica) do Socialismo Real. O dar a uns poucos o direito de serem verdadeiros arquitectos do social transformou a maioria dos seus concidadãos em abelhas (pouco) trabalhadoras e alguns outros em zangões ao serviço das Abelha-Mestra.

Disto mesmo nos deu conta (em entrevista ao Expresso, 14-X-89) Alexandre Tsypko, doutor em filosofia e membro do CC do Partido Comunista da URSS, que a uma pergunta sobre quando é que pode surgir um fenómeno como o estalinismo, respondeu:

Quando são destruídos todos os mecanismos de contenção. Em muitas sociedades existem forças elementares de contenção que se expressam através da moral, do sistema de instituições religiosas, na divisão entre poder secular e poder laico. Na Europa, por exemplo, a religião, especialmente o catolicismo, desempenhou o papel de uma força que conteve a tendência totalitarista. Infelizmente o catolicismo não estava representado na Rússia, a destruição da Igreja como instituição social e o ateísmo forçado contribuíram para a formação de uma situação em que tudo era permitido.


Continuando a fazer uso da prata da casa, não resisto a deixar aqui uma sábia advertência que, já em 1933, o Professor Joaquim de Carvalho fazia numa altura em que a atracção pelo planeamento, pelo Estado e pelo modelo de ´centralismo democrático´ proposto pelos socialistas em nome do interesse público ia a ponto de se exprimir no ódio ao liberalismo numa cantiga a que ele alude´:



Quando ouve a cantiga do ´liberalismo já lá vai, [deu a alma ao Criador] ...´ entende o democrata que o governante, eleito democratissimamente por sufrágio directo e universal, tem o direito de nos impôr a crença religiosa que ele quiser, de nos coagir a pensar o que ele entender, de nos determinar a profissão que seguiremos, de regular toda a nossa vida como se fosse a peça de um relógio? Pois quem assim pensa que lhe preste, e se satisfaça em ver nas formigas e noutros insectos o espelho da vida que lhe convém. A democracia foi uma conquista grega, e desde então persistiu sempre em numerosíssimas cabeças, sem esquecer as de, por vezes resolutos, teólogos cristãos; o liberalismo pelo contrário, é uma conquista moderna, dos povos civilizados, e combatê-lo é no íntimo, destruir a civilização e rasgar a mensagem eterna de Jesus - a dignidade da pessoa humana.


No fundo Joaquim de Carvalho está a fazer eco da diferença e mesmo possível oposição entre liberalismo e democracia. Uma distinção que é essencial para perceber a tradição de pensamento bem presente também no nosso Alexandre Herculano e que Joaquim de Carvalho vê espelhada numa frase do Novo Testamento:"Veio Jesus e disse que se desse a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus e desde então foi possível a generosa atitude de espírito e de coração donde brota o liberalismo."


Mas Joaquim de Carvalho também percebe que este acento na liberdade pessoal poderia levar a um dualismo entre a Sociedade e o Estado (e de uma forma mais particular entre a política e a economia) daí que coloque algumas interrogações:


Há na neutralidade do liberalismo, como dizia, salvo erro, Oliveira Martins, a liberdade de morrer de fome e na zona que o século XIX considerou apolítica, isto é, a esfera económica, um dualismo que a justiça e o interesse público aconselham que cesse, tornando-a política e estatizada?
Se assim é, que se não tome a parte pelo todo, se não confunda o revestimento com a essência, se não façam calar aquelas vozes que querem que a economia da prosperidade do século XIX se não volva no nosso século em economia de miséria.

Talvez a questão – e nisso PA parece andar no certo – seja de facto, em última instância, religiosa, e embora não seja possível abordá-la aqui é talvez útil e educativo recordar uma distinção que nas suas Noções Elementares de Filosofia Geral, o nosso Silvestre Pinheiro Ferreira faz entre a concepção clássica de divindade formadora (arquitecto) e a concepção cristã de divindade criadora.
Ou seja, em perceber que o verdadeiramente extraordinário sobre o Deus cristão é ser um Deus ´ordinário´: um Deus humilde que respeita a diversidade das leis.

Quem sabe não seja de todo abusivo dizer que o Deus Biblico é um deus secular e um deus sagrado, isto é, um Deus que revela o seu mistério mas que ao mesmo tempo também respeita as leis naturais, reconhecendo autonomia parcial à sua criação e de forma especial ao homem. O Deus cristão é por certo um Deus que intervém por acções extraordinárias mas a sua intervenção normal e essencial faz-se através da providência ordinária. O que verdadeiramente diferencia a ordem "espontânea" do socialismo do capitalismo é que o capitalismo apela mais a um deus ´ordinário´ e a pessoas comuns e o socialismo a uma actuação à margem das leis, ou pelo menos acima das regras comuns. Já o socialismo, assim como as diversas formas de o nacional-socialismo, revestem de Providência Extraordinária os seus ´génios´ de que o culto da personalidade é apenas um sintoma.

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