12 julho 2007

vera

Se alguma coisa aprendi, até hoje, na vida, é que devemos sempre desconfiar do que nos é dado. Não de quem nos dá, nem tão pouco das intenções com que o faz, mas das consequências imprevisíveis desses generosos actos. Como vão ver, os padecimentos que aqui referi, ocorridos no fim da minha última viagem aérea, foram apenas a cereja em cima de um bolo que começara muitas horas antes...

No meu caso, eu tinha pedido um upgrade para a classe executiva, ainda sujeito a confirmação, privilégio a que posso ter acesso graças a um magnífico cartão «Vitória» da TAP, onde as milhas acumuladas nos voos da companhia permitem estas e outras mirabolantes regalias.
Chegado ao aeroporto de Guarulhos, o cenário era, como quase sempre é, de apocalipse: centenas de pessoas na bicha, perdão, na fila do check-in da TAP, o que me fez precipitar para o balcão da classe executiva para perguntar se já fora dado «despacho» ao meu «requerimento».

Fui atendido por uma dessas hospedeiras de terra extraordinariamente bonitas – uma loira, acredito que natural, brasileira -, muito simpática, estranhamente muito mais simpática do que o normal, que nos contemplam com um olhar vago e aéreo, como se estivessem a ver através de nós e para além de nós, enquanto pensam como hão-de matar o marido ou o namorado, em represália de as terem deixado a secar, à espera, durante toda a noite. Um olhar simultaneamente meigo e assassino, como só as mulheres, algumas mulheres, são capazes de ter.

Depois de me ter dito umas graças e se ter metido comigo por ser português, disse-me, com uma invejável pronuncia «paulistana»: «tenho duas boas notícias para si: «vai em executiva, a primeira; vou-lhe oferecer o upgrade sem dispêndio de milhas, a segunda». Em seguida, calou-se, olhou para mim seraficamente, e começou a rir desalmadamente. Agradeci-lhe com entusiasmo, fiz o check-in, passando à frente, melhor, ao lado de centenas de pessoas que seguiam em «turística», e avancei aliviado para a porta de embarque.

A classe executiva destes aviões que atravessam o Atlântico é, na verdade, uma coisa especial: as cadeiras transformam-se em camas, a alimentação é razoável e as sessões de cinema decorrem sem paragens, exibindo bons filmes, a maior parte deles ainda sem estreia em Portugal. Preparava-me, assim, para uma viagem reparadora, quando se sentou ao meu lado uma respeitável senhora.

Nem sempre é fácil a um homem descrever uma mulher bonita, ainda que já muito marcada pelos vestígios do tempo, sobretudo quando se apresenta com uma impecável toilette, um genuíno Rolex e uma mala Luís Vitton igualmente verdadeira. A senhora em causa sentou-se ao meu lado, cumprimentou-me discretamente e ficou à espera que o avião cumprisse o seu dever. Isto é, que levantasse voo e a levasse, quanto antes, ao destino escolhido.

Ao fim de algum tempo, começou a falar. Julgo que o pretexto da conversa foi um livro do Oakeshott que eu trazia, o que lhe permitiu dizer rapidamente que era licenciada em Direito e em Sociologia (uma combinação explosiva…), advogada e professora universitária. A conversa durou a noite inteira e só terminou já no aeroporto de Lisboa, onde a Vera, como me disse chamar-se, ficou. Antes, e durante quase dez horas de voo, o cenário foi de puro surrealismo.

O primeiro motivo de espanto ocorreu, logo no princípio, quando a Vera me disse que vivera nos anos oitenta em Lisboa, onde ia frequentemente assistir aos comícios do Álvaro Cunhal. Não querendo ser deselegante, não resisti a perguntar-lhe o que fazia uma mulher sofisticada, a viajar em executiva, com um Rolex no pulso e uma Vitton na mão, nos comícios do Cunhal? Ela prontificou-se a esclarecer-me: é, foi desde sempre, uma revolucionária comunista, membro da «executiva» do PT, admiradora incondicional de Castro, carpideira dolorosa do fim da URSS, cuja responsabilidade imputa a Gorbachev, que esganaria com as próprias mãos se lhe dessem essa oportunidade. Petrificado, comecei um belo discurso platónico sobre as virtudes da liberdade e do individualismo, ao que ela olhou para mim e me fuzilou: «Fássistada! Você não me enganou! Pediu a «Veja» quando aqui chegou, esse pasquim proto-fascista ordinário, e lê livros reaccionários! Se estivéssemos numa revolução, estaríamos em lados opostos da barricada! No melhor, eu daria um tiro em você. No pior, eu o mandaria para as plantações de cana, sem prazo certo».

Foi aí que eu lhe confessei que o nome dela – Vera – era o da minha muito querida e recentemente falecida cadela, única razão para não lhe começar a recitar de imediato «A Riqueza das Nações» em versão brasileira. Ela riu casquinhosamente, e desenvolveu a conversa em torno de temas aliciantes, como a natureza malévola do sexo feminino, o seu desejo em ser uma «mulher objecto» com um trouxa que a aturasse e sustentasse (o último, o marido com quem estivera quinze anos - «um fássista analfabeto e ignorante!», já desandara há algum tempo…), em vez de ser a mulher «liberada» e «intelectualizada» que eu tinha perante mim. Falou da campanha que fizera pelo Fernando Henrique Cardoso, nos tempos da ditadura de Getúlio, quando ela era estudante e ele seu professor (um «fássista! que me enganou!»), das suas viagens a Cuba, onde o Fidel só mata quem «não presta», e, por fim, a vontade que tinha de fuzilar todos os «fássistas!» do mundo. A começar, naturalmente, pelo que tinha ao lado, a quem admitia também atirar pela janela mais próxima do avião, se eu lhe voltasse a dizer que apreciava os artigos de Diego Mainardi.

A conversa manteve-se neste tom animado até chegarmos a Lisboa. A Vera foi, inequivocamente, das companhias de viagem que tive até hoje, a mais fascinante. Não há dúvida que os homens são imensamente parvos e gostam do contraditório. Sobretudo quando ele vem de uma revolucionária leninista, a cheirar a Channel e a medir o tempo por um Rolex.

Quando, no Porto, vi que não tinha a minha mala, pensei que tivesse sido vitima do primeiro atentado contra a minha propriedade perpretado pela Vera. Afinal, como já aqui contei, enganei-me: a mala apareceu com tudo lá dentro (apesar de ter um fecho suspeitamente estroncado) e da Vera não houve mais sinais. Que tenhas umas férias em paz e que continues o combate sem tréguas ao «fássismo», é o que eu te desejo, camarada!

10 comentários:

Anónimo disse...

Realmente vejo, que estava enganada quanto a viagem de volta a Portugal, não foi um filme de terror(explico): a começar pelo engano do roubo da mala, a procura incansável a Ana, a compra de perfumes e pra terminar acaba achando a Vera!
Que mais virá nos próximos capítulos dessa tão animada e surpreendente viagem de volta pra casa?
Sugiro a partir do 1º capítulo escrever um livro o que vc acha?

Luís Aguiar Santos disse...

Parabéns pelo novo Portugal Contemporâneo!

rui a. disse...

Obrigado, Luís.

Anónimo disse...

Belo texto. Parabéns.

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Anónimo disse...

«tenho duas boas notícias para si: «vai em executiva, a primeira; vou-lhe oferecer o upgrade sem dispêndio de milhas, a segunda». Em seguida, calou-se, olhou para mim seraficamente, e começou a rir desalmadamente. "

A segunda era bem melhor que a primeira.

Quando a esmola é grande o pobre desconfia. mas neste caso naão se aplica.

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Fernanda Valente disse...

Não há dúvida de que o "Portugal Contemporâneo" personalizado ficou mais bonito, apesar de ter apanhado um susto quando estabeleci o link.
Quanto ao diálogo, imagino que deva ter sido bem humorado! Não percebi se impende da sua narrativa tentar estabelecer um paralelo entre este cenário discursivo doméstico e o actual momento político paulistano.

Anónimo disse...

Cara Fernanda,

O único paralelismo é, de facto, em relação a alguma «elite» paulista e, na generalidade, brasileira, que acha que ser de esquerda significa ser inteligente. Por cá, como sabe, já abandonámos esse tique há para aí uns bons vinte anos.

Abç.,

RA

Eduardo disse...

Essa Vera está ao nível de quem defende Salazar. É um nível baixo.

Anónimo disse...

Só pq não tenho um ROLEX e nem uma mala Luis VITTON e não me chamo VERA não mereço resposta da minha pergunta?

LR disse...

Então depois de uma viagem em tal companhia ainda te vens queixar da TAP? Mal agradecido! Uma revolucionária requintada vale bem uma mala...