Se eu fosse chamado a escolher, ao longo dos últimos três séculos, a classe profissional ou a formação intelectual que mais inimiga foi da liberdade, eu não hesitaria na resposta - a dos juristas. Em Portugal, então, onde, durante a maior parte deste período, o panorama intelectual foi dominado em regime de monopólio pela Universidade de Coimbra - e, dentro dela, pela Faculdade de Direito -, os efeitos do seu predomínio intelectual e político foram devastadores.
A concepção católico-cristã de liberdade é certamente uma concepção demasiado elaborada para ser apreendida por juristas obscuros, tabeliões de aldeia ou advogados de província, como aqueles a que Burke faz referência (cf. post anterior). Não surpreende, por isso, que a revolução francesa tenha sido o momento decisivo em que a concepção católica de liberdade foi subtituída pela concepção vulgar, e que tem servido de base ao liberalismo moderno.
Esta concepção entende a liberdade como um círculo desenhado em torno de cada homem e dentro do qual ele tem o direito de fazer aquilo que quer, apenas limitado pelas leis da natureza e pelas leis da sociedade (cf. Mises, citado abaixo; a formação original de Mises era também jurídica).
Na nossa tradição civilizacional, o ideal de liberdade terá sido expresso pela primeira vez quando os primeiros cristãos, perseguidos em Roma, reclamaram a faculdade de adorarem o seu Deus. Este ideal contém em si a ideia de um direito, mas de um direito que é meramente instrumental para o fim que eles visavam atingir ao reclamarem a liberdade, e que era o de poderem cumprir as suas obrigações para com Deus. É por isso que a primeira liberdade, e a mãe de todas as liberdades, foi a liberdade de culto religioso.
Porém, a obrigação que é imanente ao ideal cristão de liberdade (1) - e não o direito, que lhe é meramente instrumental - caiu com a revolução francesa, e ficou só o direito. Por isso, a concepção moderna de liberdade acaba por se resumir a um conjunto de direitos positivos que são reconhecidos a cada homem ou mulher - o direito à liberdade de expressão, o direito a trabalhar, o direito a não ser discriminado, etc., e mais recentemente em Portugal, o direito a abortar.
Enquanto a concepção católica de liberdade - segundo a qual a liberdade é a capacidade que é reconhecida a cada homem para poder cumprir as suas obrigações para com os outros e, em última instância, para com Deus - conduz a uma sociedade pacífica e próspera, e onde os conflitos são mínimos, a concepção moderna de liberdade conduz a uma sociedade que é radicalmente diferente.
Nesta concepção, a liberdade é um círculo em torno de cada homem e contendo um conjunto de direitos positivos pertencentes a ele. Quando os naturais conflitos de interesses existentes entre os homens emergem e conduzem a que os círculos de liberdade se intersectem (cf. imagem), esta sociedade torna-se uma sociedade onde reina a litigação e o conflito - e, portanto, uma sociedade que é particularmente próspera para os juristas e os advogados.
Em última instância, neste conflito, em que cada homem reclama a prevalência do seu círculo de liberdade (direitos) sobre o círculo de liberdade (direitos) do outro ou dos outros, vai prevalecer a vontade daquele que é mais forte ou que tem mais poder -, nem que seja o poder económico para pagar a advogados. Uma sociedade fundada neste conceito de liberdade acaba inevitavelmente na opressão dos mais fracos pelos mais fortes. Não é, de resto, surpreendente que a revolução francesa, que foi feita em nome desta concepção de liberdade, tenha produzido, como primeiro resultado, não a liberdade, mas o terror.
(1) A própria liberdade do Papa, que em posts anteriores caracterizei como o homem mais livre do mundo, traduz-se, em última instância, numa obrigação - a obrigação de cumprir as leis de Deus. Daí também a afirmação de Lord Acton, expressa em post anterior, segundo a qual a liberdade é menos segura quando encarada como um direito do que quando encarada como uma obrigação - porque de um direito, pode-se prescindir dele, de uma obrigação é que não.
3 comentários:
A CENSURA na comunicação social existe, está aí. Por isso...
Para lá de uma certa Almada virtual na televisão e nos encartes de jornais, há quadros, cenas e imagens de uma Almada real escondida e esquecida que os almadenses não gostam de ver.
http://emalmada.blogspot.com
Ora bem, é exactamente nestes termos que eu gostaria que as questões fossem inicialmente colocadas, tal como referi no comentário anterior. Dou-lhe, de novo, os parabéns (a primeira, se se lembra, foi a propósito do post que escreveu sobre o aborto). Mas a relação entre aquilo que cada um considera ser o seu dever para com os outros, na linha do ideal agostiniano do "Ama a Deus e faz o que quiseres", embate com frequência na circunstância e na contingência cognitiva e vivencial humana. E é precisamente nisso que, a meu ver, terá que intervir a racionalidade, enquanto factor de acautelamento da possibilidade de solução de conflito, embora sem abandonar o horizonte da transcendência (ou da imanência, conforme a perspectiva).
Quando as discussões começam - por motivos inconfessados ou simplesmente por pura ingenuidade - pela ficção, como é o caso de Hobbes ou mesmo de Rousseau, é natural que, a certa altura, tudo se baralhe e andemos às voltas como baratas tontas. E o (pouco) que conheço da formação dos juristas, a este nível, é lamentável.
Logo que tenha algum tempo disponível, voltarei "à carga", mais aprofundadamente e com maior pormenor do que me foi possível até agora.
Que curioso, deve mesmo ser a costela judaica do Pedro Arroja a manifestar-se. É que são os judeus que consideram que a sua relação com Deus se deve concretizar no cumprimento da Lei. A obediência à Lei é o objectivo de qualquer bom judeu.
Os cristãos são diferentes. Os cristãos devem fazer o DISCERNIMENTO sobre a vontade de Deus para a sua vida - que é a sua MISSÃO - e, de seguida, viver a missão que Deus deu a cada um de nós cristãos.
Bento XVI deve ter feito o seu discernimento quando se decidiu pelo sacerdócio e quando aceitou o pontificado. E a sua Missão é ser o pastor dos católicos até ao fim da sua vida. Ao fazê-lo, está a cumprir a vontade de Deus, não a sua Lei.
Se o Pedro Arroja considera que os cristãos (Papa incluído) têm como objectivo de vida cumprir a Lei de Deus, recomedo-lhe que vá ler as passagens do Novo Testamento em que Jesus se pega com os fariseus, que eram sempre tão escrupulosos no cumprimento da Lei.
Para Jesus, a Lei tem o seu lugar, mas a sua importância verga-se perante a necessidade de acolher os outros, o perdão de Deus, a necessidade de redenção, a decisão de "seguir Jesus",... Se o Pedro Arroja mostra não perceber isto, fala como um verdadeiro judeu.
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