01 julho 2007

Neoliberalismo: a liberdade vista do gueto

Provavelmente, o tema central do neoliberalismo, a grande distância de todos os outros, é o Estado e a defesa estridente que faz da tese do Estado mínimo - um Estado que se limita a assegurar as funções de defesa, justiça e ordem pública. Na sua versão mais extrema, o Estado torna-se totalmente desnecessário (Rothbard).

A imagem de marca do intelectual neoliberal é a sua aversão ao Estado, a atribuição ao Estado de todos os males que afligem a sociedade, a crítica feroz de tudo aquilo que é feito pelo Estado e, sobretudo, a visão do Estado como fonte de toda a opressão. Esta concepção do Estado como a maior ameaça à liberdade é uma concepção profundamente judaica.

Ao longo de milénios, os judeus viveram dispersos por múltiplos países que não o seu, em pequenas comunidades fechadas, e sujeitos a discriminação e perseguição organizadas a partir do poder centralizado do Estado. A vida do gueto obrigou-os a evoluir formas autónomas de governação comunitária, por vezes bastante elaboradas com os seus sistemas próprios de educação, saúde e assistência aos pobres.

Para os judeus, o Estado constituiu sempre uma ameaça permanente à sua independência, à sua liberdade e, em última instância, à sua sobrevivência e, em muitos casos, eles acabaram por sucumbir perante essa ameaça - mais recentemente, na Alemanha nazi. Não surpreende, por isso, a aversão que a tradição judaica desenvolveu em relação ao Estado e a todas as formas de autoridade e poder que mediassem entre Deus e os homens, como, por exemplo a Igreja.

Na tradição cristã é diferente e, na realidade, em toda a literatura do liberalismo clássico - que é essencialmente de inspiração cristã - não existe, nem de longe, este sentimento de aversão ao Estado que está presente na literatura neoliberal, que é predominantemente de inspiração judaica.
Na tradição cristã, o Estado é visto como uma instituição que garante a liberdade - é o Estado que, através do seu poder de coerção, garante a liberdade dos mais fracos perante as ameaças de abusos por parte dos mais fortes. E, ao contrário da tradição judaica que vê no Estado o símbolo da opressão, a tradição cristã vê nele o símbolo da independência.

Assim, a primeira preocupação dos pais fundadores portugueses no século XII foi a criação e o reconhecimento de um Estado que tornasse o novo país independente e livre face a Castela - e isso eles conseguiram abrigando-se à sombra da autoridade da Igreja. E este exemplo português provavelmente não encontra rival para ilustrar porque é que os autores liberais clássicos atribuem tanta importância à religião e à Igreja como um pilar essencial de uma sociedade livre.

Ao contrário da tradição judaica, que vê com desconfiança todas as formas de poder e autoridade colocadas entre Deus e os homens, a tradição cristã reconhece a importância do Estado como garante da liberdade. Porém, possuindo o Estado o monopólio do poder de coerção na sociedade, ele é propenso a cometer abusos, os quais só podem ser contidos contrapondo-lhe uma autoridade moral que estabeleça uma fronteira e o limite no potencial que ele contém para o uso arbitrário do poder - e essa é a autoridade da Igreja.

É neste sistema de checks and balances, neste equilíbrio delicado entre o Estado e a Igreja, entre o poder temporal e o poder espiritual, que se funda a concepção cristã de uma sociedade livre. Esta concepção é muito diferente da concepção judaica e neoliberal, segundo a qual uma sociedade livre é aquela em que o Estado é mínimo - e, no limite, inexistente - e a religião é retirada da esfera pública da sociedade e remetida para a esfera privada de cada homem.

2 comentários:

CN disse...

Bem, a mulher de Rothbard era protestante (razão pelo qual Rothbard "rompeu" completamente com Ayn Rand, e Rothbard deve ster sido o judeu agnostico mais admirador da Igreja Católica de sempre (e o mais critico de Israel)..

e por isso o campeão do combate ao neo-conservadorismo desde que estre nasceu bem cedo com Irving Kristol.

Eu sei que conhece bem ROTHBARD, mas acho que tem de o "enquadrar" de outra forma,.

Os mais seguidores de Rothbard, Lewrockwell.com e no LvMI, são católicos, católicos tradicionalistas (muitos também protestantes).

Quanto à ausência de Estado, a Igreja Católica ao assumir-se como um poder alternativo ao politico, tendo um direito próprio, etc, é a própria expressão e eu diria quase inspiração do anarco-capitalismo.

Além disso, Rothbard é um jusnaturalista na mais pura tradição cristã e católica (que também vai buscar tudo o que de bom existe na história do protestantismo).

Ao contrário do utilitarismo de Mises e o hiper-racionalismo de AYN RAND.

Agora, quanto à existência do Estado sem si:

Todos os que defendem o Estado como uma verdade filosófica, para serem coerentes têm de defender um Estado Mundial.

Se permite que exista mais que um Estado (e asisim mais do que um Direito e forças de segurança), podem então existir N até ao ponto em que um bairro tem o direito de se declarar como Estado.

Filosóficamente o ancap é inatacável. Todos as nossa relações devem ser contratuais, de "convenant" e fundada nos direito naturais.

Depois, a teoria ancap tem muito para dar.

Por isso vemos os tribunais arbitrais privados a serem usados de forma crescente em todo o mundo, quer internamente, quer em negócios entre ordens legais diferentes.

Voltando ao inicio, a ICAR ao longo da história acabou por fazer muito para esta ideia de pluridade politica.

No apogeu máximo de Cristianismo, na Idade Média, não existiam Estados. Muito Reinos sim, com a sobreposição de muitas fontes de direito.

O protestantismo e a Reforma, foram os grandes responsáveis pela ideia de Estado e nacionalismo.

Onde antes tinhamos uma ordem universal multi-nação passou a existir a ideia de Estado com uma religião-igreja "naciona" ligada ao Principe.

CCz disse...

Caro Prof.

Conhece aquela história em que um grupo de oficiais do império austro-hungaro está junto ao caixão de um colega falecido. Cada um deles despede-se do morto atirando um punhado de terra e proferinfo uma pequena frase.
O de etnia eslovaca disse: "Pela Eslováquia";
O de etnia romena disse: "Pela Roménia";
O de etnia magiar disse: "Pela Hungria";
E assim sucessivamente, ateé que chegou um oficial judeu que ao atirar a terra disse "Pelo império"

Julgo que o estado de que fala, na tradição cristã, é um estado étnico.
Caminhamos a passos largos para um mundo progressivamente povoado por estados não-étnicos, estados em que, se jurarmos fidelidade a uma bandeira, respeitarmos uma constituição e trabalharmos, somos bem vindos, independentemente da nossa origem étnica.

Não me custa nada perceber uma aversão judaica (se é que ela exisite ou existiu) ao estado histórico étnico, pudera, os progroms, eventualmente abençoados pela dupla rei-igreja, dificilmente poderiam ter outro efeito.