Entre os 100 deputados às Cortes Constituintes saídas da Revolução Liberal de 1820, cerca de 60 eram formados em Direito pela Universidade de Coimbra - advogados, na maior parte de província, juristas trabalhando em repartições do Estado central e das autarquias locais, alguns magistrados. O presidente, Manuel Fernades Tomás, às vezes chamado "o heroe da Revolução" era um deles, e entre os quatro secretários, apenas um tinha formação diferente (Matemática).
Não perderam tempo os homens de leis e logo no artigo 2º da Constituição - que viria a ser aprovada em 1822 -, a sua preocupação foi legislar a liberdade: "liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exacta observância das leis".
Se é possível imaginar uma concepção de liberdade que mais directamente conduza à discórdia, à imoralidade e à desordem social, esta é a concepção perfeita. Tudo é permitido, a menos que seja explicitamente proibido por lei. A concepção católico-cristã de liberdade que, em última instância, se traduz na obrigação de observar as leis de Deus, adquire, na concepção dos pais do liberalismo português, um sentido exactamente contrário, e a liberdade passa a ser a desobrigação de obedecer a quaisquer leis, excepto aquelas que sejam feitas pelos juristas de Coimbra.
A Contituição de 1822 foi, naturalmente, uma das vítimas - a segunda - desta concepção de liberdade, pois só viria a vigorar durante dois curtos períodos. A primeira vítima foram as próprias Cortes Constituintes (e as Cortes Ordinárias que se lhe seguiram), pois "a assembleia caira em grande descrédito por servir de palco a tribunos sem qualquer preparação ou valimento e que julgavam, apenas pela via oratória, resolver os mais instantes problemas nacionais. O monarca (D. João VI) recebia constantes enxovalhos...(da) tribuna parlamentar"(1), certamente porque não existia uma lei que proibisse insultar o rei.
O próprio D. Pedro, primeiro imperador do Brasil e de cujo sentimento liberal não se pode duvidar, numa proclamação à nação antes de ser aprovada a Constituição, não poupava a inoperância e a incompetência do Parlamento de Lisboa: "despotismo legal, mil vezes mais tirannico que as arbitrariedades de hum só Déspota". (2)
A terceira vítima dos primeiros liberais portugueses iria ser Portugal. Ainda nas palavras de D. Pedro, esta assembleia "ia precipitar a Nação inteira em profundo abismo... e que servio somente para inflamar as paixões corrosivas de muitos Demagogos, que para vergonha nossa têm assento no Augusto Sanctuario das Leis" (3).
Não se enganou.
(1) J. Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol VII, Lisboa: Verbo, 1983, p. 388.
(2) Proclamação dirigida aos portugueses em 21 de Outubro de 1822.
(3) ibid.
2 comentários:
Definitivamente Pedro Arroja é imbatível em divagações cósmicas e outros ensaios de liberdade.
4 hero
E a lei de Deus, ela própria, não tem sido e, certamente será, objecto de interpretação datada? E a que Deus se refere, por isso mesmo?
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