10 junho 2007

porque falhou o estado na ota?*


Todo o processo de decisão pública da construção do novo aeroporto é, sem que até agora ninguém o tenha feito notar, o mais completo libelo acusatório do intervencionismo estatal de que tenho memória em Portugal. Não necessariamente por o lugar escolhido ter sido a Ota, menos ainda por causa das dúvidas que começam agora a surgir sobre o desmantelamento do Aeroporto da Portela, ou ainda em razão da oportunidade e da utilidade estratégica nacional e económica desta decisão. Fosse qual ela fosse, ocorresse em que momento ocorresse, com implicações e consequências previsíveis de maior ou menor gravidade, ela seria sempre questionada e dividiria o país. Por outras palavras, em qualquer dos casos a decisão política do governo sobre um projecto de tão grande dimensão será uma má decisão aos olhos da opinião pública.

E porque razão sucede isto, numa matéria tão sensível, aparentemente tão do domino público como esta obra que envolve muitos e muitos milhões de euros, uns de proveniência comunitária, outros de origem privada, e certamente que grande parte com ascendência estatal. Um empreendimento que mexe com valores todos eles supostamente com relevância social e colectiva, como a segurança de cidades e pessoas, a sua velocidade de locomoção, o desenvolvimento económico nacional, antes e durante a construção da nova estrutura e depois da sua conclusão, o ambiente, o emprego temporário e permanente de milhares de portugueses, etc. Não devia o país, ao fim de tantos anos de discussão e debate em torno do assunto, país que ainda por cima é limitadíssimo em possibilidades geográficas, estar de acordo quanto à decisão tomada, ou, pelo menos, aceitá-la como competente e correcta, em vez de a continuar a questionar tão violentamente, como tem feito cada vez mais à medida que o tempo passa? A que se deve isso? À incompetência dos governantes, destes e dos anteriores do PSD que tinham tomado a mesma decisão que agora contestam, à falta de estudos, à ausência de análise de outras alternativas, à deficiente contabilização dos custos? Apesar de alguns críticos adiantarem estas e outras razões, o motivo de tanta desconfiança é outro: a construção de um aeroporto internacional como o da Ota não pode ser decidido pelo poder público monopolista, mas sim pela iniciativa privada e concorrencial. Porque, entregue ao governo e aos políticos, qualquer que seja a decisão suscitará sempre dúvidas profundas, que, em última análise, questionam a própria honestidade da decisão e dos decisores. Como tem vindo a suceder, ainda que por enquanto veladamente.

Quem conhecer um pouco a Teoria da Escolha Pública, sabe que ela introduz na análise da decisão política critérios de racionalidade que são próprios dessa actividade social, e que passam por objectivos que nada têm a ver com o etéreo «interesse público» (a versão contemporânea do clerical «bem comum», só que assegurado pelo Estado), mas com os interesses concretos e bem palpáveis da política, na melhor das hipóteses, ou mesmo pessoais dos políticos, na pior. Veja-se, a este propósito e obviamente muito longe de querer estabelecer paralelismos, as recentes estatísticas que concluíram que 1/3 da receita fiscal cobrada no Brasil é desviado para os bolsos privados dos políticos e dos agentes da corrupção.

Pondo de lado este exemplo extremo do Brasil, considerando uma amostra normal dos países democráticos ocidentais, com níveis razoáveis de controlo da legalidade dos actos dos agentes políticos, encontramos, em todos eles, a criação de condições que originam a rent-seeking, isto é, a actuação de grupos de interesse e de pressão sobre o governo com a finalidade de obterem a concessão dos direitos de propriedade sobre os bens e serviços que o Estado monopoliza como se lhe pertencessem. Esta disputa que se gera entre os grupos de pressão pelo favor monopolista do Estado, leva a um aumento artificial dos custos dos serviços e dos bens, que inevitavelmente se reflectirá nos preços de venda ao consumidor. Por outro lado, a situação de monopólio estatal desses bens e serviços, assim como da emissão de licenças de concessão e de exploração, aumentam exponencialmente as possibilidades de corrupção dos políticos, ou de favorecimento de certos grupos financeiros em desfavor de outros, como recentemente se levantou a suspeita de ter acontecido entre nós com a PT. O que provoca a desconfiança generalizada dos cidadãos em relação à política, aos políticos e às instituições públicas. Desconfiança metódica e de princípio, que é partilhada pelas próprias instituições judiciais de controlo da legalidade, que, in dubio, acusam os agentes políticos. Como se tem visto ultimamente em Portugal, com a banalização do estatuto de arguido na classe política. Em conclusão, a monopolização, por parte do Estado e do Governo, de direitos de propriedade sobre bens e serviços, a pretexto da sua natureza pública e do interesse colectivo que lhe será inerente, que supostamente lhes compete garantir, tem, assim, efeitos perversos para os cidadãos, para os próprios políticos, e para o Governo e o Estado.

Esta é mais uma boa razão para afastar o intervencionismo estatal dos grandes projectos que envolvem o «interesse público». No caso da Ota, o Estado que privatize a ANA, a empresa proprietária e gestora dos aeroportos nacionais, e lhe permita tomar a decisão de manter ou desmantelar os que tem em funcionamento e que são os seus activos principais, e de abrir outro ou outros onde bem entender. Desde que, obviamente, o faça em concorrência aberta com outras empresas que se estabeleçam no mercado, e em obediência a regras gerais e abstractas que a lei crie para o sector e para o seu desenvolvimento. Certamente que não seria por falta de aeroportos que os cidadãos se queixariam. E estou certo que seria a única forma de deixarmos de olhar para uma coisa tão elementar, como a construção de um aeroporto, como um drama nacional.


* Ou porque falhou o Estado na OPA à PT, na Expo 98, no Porto 2001, no Euro 2004, no Centro Cultural de Belém, na Casa da Música, etc.?

4 comentários:

Anónimo disse...

Devido «À incompetência dos governantes, destes e dos anteriores do PSD»?

Sim, absolutamente.
Não sabem história, nem querem saber.
a)Se não, teriam tido presentes as razões da escolha de Rio Frio.
No tempo em que havia em Portugal 'planos de fomento' articulados.
b)Não têem coragem.
Na segunda metade da década de 90 - Foz Côa, Coicineração... - como podia o governo (Cravinho e Guterres), afrontar os 'ambientalistas'?
Mesmo invocando um 'interesse nacional'?

Anónimo disse...

Análise impecável, que explica muitos dos erros e derrapagens nas decisões governamentais. Neste caso da Ota, os privados decidiriam de modo a não criar novo elefante branco.

No entanto, a "decisão privada" a funcionar em liberdade total e sem restrições, onde a busca do lucro é o 1º objectivo, pode acarretar vários inconvenientes para o país, considerado num todo.

O caso mais flagrante é a construção imobiliária em zonas protegidas, dunares, etc, que só prejudicará os próprios investidores numa faze ulterior. Mas o lucro a curto prazo está assegurado e isso é o que mais conta.

Poderemos pensar. Então não acontece já tudo isso mesmo com as leis actuais? O problema é que o estado se mostra incompetente até para aplicar essas restrições. Muitas vezes não são aplicadas para bem dos empresários e das contas bancárias de alguns F.públicos. (Mas isto não se pode dizer, ou ficaremos na bicha atrás de Sanches).

Tonibler disse...

(...)"das dúvidas que começam agora a surgir sobre o desmantelamento do Aeroporto da Portela(...)"

Os estados fazem aquilo que os povos os deixam fazer. Como é que o desmantelamento da Portela só agora levanta "dúvidas"? O facto é que o desmantelamento da Portela é o melhor argumento contra a OTA, é o aeroporto que JÁ TEMOS e só agora "levanta dúvidas"?
Como é que o projecto estruturante de um país pode ser a merda de um aeroporto? Alguém, na sua vida familiar, empenha a educação dos filhos ou a saúde dos pais para comprar um carro? Como é que uma merda de um aeroporto assume esta importância "estruturante"?

A culpa não é do estado. É do dono dele.

Ventanias disse...

Excelente ponto de vista, que subscrevo integralmente. O que me surpreende é que ninguém na oposição ao "centrão" (i.e. PS-PSD) tenha percebido ou aproveitado, até agora, para capitalizar nesta certeza aqui bem exposta: o Povo já não acredita no Estado "deles"; o Povo quer mais decisões descentralizadas e menos decisões estruturantes. Criem-se condições, ou seja destrua-se o centralismo do Terreiro do Paço, e NÓS reconstruímos Portugal!