18 junho 2007

o estado do estado

O Ricardo Alves meteu na gaveta as picardias habituais, que dão animação à discussão mas, reconheço, retiram-lhe alguma seriedade, e levantou questões interessantes, em torno das quais a conversa pode evoluir favoravelmente. Vou tentar responder-lhe, transmitindo-lhe a minha opinião, dentro daquilo que considero ser a tradição liberal.

Sobre o Estado, Ricardo Alves pede-me que me pronuncie sobre aquele que foi, na minha opinião, o seu momento fundador, em que se dá o contrato social que permite a passagem do estado de natureza para a sociedade política. Sintomaticamente, avança com três hipóteses, correspondendo cada uma delas a uma das marcas da soberania enunciadas, no século XVI, por Jean Bodin: a justiça, a paz e a guerra, e a tributação.
Admito que, ainda hoje, essas são as principais marcas da soberania do Estado. E, por isso, se percorrêssemos a sua genealogia, provavelmente encontraríamos o momento fundador do Estado. Não de qualquer tipo de Estado, note-se, mas do Estado Moderno, precisamente daquele modelo que tem em Bodin o seu primeiro grande teorizador.
Só que, julgo que ao inverso do que defende o Ricardo Alves, eu não identifico o Estado com o seu modelo de Estado Moderno e Contemporâneo, que é o que resulta da centralização europeia pós-medieval, tecnicamente apurado a partir da Revolução Francesa. De resto, eu não acredito no «estado de natureza» e creio que ele não foi mais do que uma alegoria criada pelos contratualistas modernos para encontrarem um «fundamento» que permitisse sugerir limitações ao seu poder sem ofender excessivamente os soberanos. Nessa medida, eu sou mais estatista que o Ricardo Alves, porque acho que a organização política da sociedade, isto é, a criação de instituições representativas dos cidadãos, é muito anterior à modernidade, melhor dizendo, é de sempre. Por isso, eu não tenho qualquer repugnância em chamar «Estado» a uma certa forma de organização política medieval (onde os defensores do modelo contemporâneo defendem a inexistência de Estado), como nos períodos anteriores da História. Nessa medida, também, considero-me aristotélico, porque acho que a polis é a condição natural da sociedade humana, e que os homens só são capazes de viver em sociedade, logo, na sociedade política.

Coisa substancialmente distinta é saber o que querem os homens do Estado, isto é, das suas instituições representativas. Aqui é que volta a ser muito importante a alegoria do «estado de natureza» e as extrapolações que os contratualistas retiraram do facto, para alguns deles histórico, da criação contratual do Estado e da redução, por essa via, da liberdade individual. É a partir daqui que começa o liberalismo e, por consequência, que me assumo como reduzidamente estatista, enquanto o Ricardo Alves prefere a soberania do Estado à soberania individual. Porque, no momento da determinação das funções e das competências do Estado, podemos optar pela tradição liberal, neste aspecto, em minha opinião, definitivamente enunciada por Locke, ou por uma tradição estatizante, de que vejo em Hobbes o moderno fundador. Seja como for, para a tradição liberal os fins do Estado, as suas funções soberanas, devem cingir-se à garantia dos direitos individuais dos cidadãos: segurança, propriedade e liberdade. Estes valores não são, ao contrário do que Ricardo Alves possa presumir, princípios de classe, nomeadamente da burguesia emergente da Revolução Industrial. Tratam-se, a meu ver, de regras da ordem moral, esta entendida como o conjunto de normas societárias que melhor se adequam ao indivíduo em contacto com os outros, isto é, à vida em sociedade. A segurança e a propriedade são as duas traves mestras da liberdade individual, e, em conjunto, são a condição necessária (mas não suficiente) para que os homens possam almejar a felicidade. Se reparar, referi serem condições necessárias, mas insuficientes, o que quer dizer que se não bastam a si mesmas: carecem de garantia e, por isso, como Locke explicou, é que se criaram as instituições representativas.

Dentre essas instituições, os liberais privilegiam, naturalmente, os tribunais e a justiça, aqui se incluindo todo o processo de criação normativa, desde a concepção das regras de direito, até à sua aplicação. Sem dúvida que, aqui, é necessário que exista uma força, se possível legitimada pela comunidade, que imponha o acatamento das regras societárias, quando a sua violação ocorrer. Mas, repare, uma coisa é dizer-se «impor o acatamento das regras», outra bem diferente é dizer «impor as regras», no sentido da sua criação. Porque, para os liberais, e aqui entramos noutro domínio da conversa, as regras de direito devem emanar espontaneamente da sociedade e não serem criadas «ex novo» pelo legislador. Este último cenário, muito comum, reconheço, na tradição jurídica europeia continental, é próprio do estatismo e do centralismo, e foi o seu mais poderoso instrumento, que levou ao absolutismo régio do passado, ao despotismo esclarecido, ao Terror das soberanias populares, e, infelizmente, ao desembargado intervencionismo dos nossos dias. Só que e para evitarmos que a conversa redunde em abstracções absurdas, eu diria que a concorrência de fontes normativas e a autonomia judicial face ao Estado, não é coisa da imaginação, mas muito real: nos sistemas anglo-saxónicos, por exemplo, em sistemas jurídicos africanos onde se respeita o direito local, na generalidade dos países europeus continentais até ao século XVIII, e, em minha opinião, na União Europeia, onde concorrem fontes normativas de diversa proveniência (legal, jurisprudencial e consuetudinária, por exemplo).

Não é, por conseguinte, uma ficção entender-se que o Estado em que vivemos possa ser reformado no sentido de admitir outro direito que não seja somente o que cria por via legislativa. Ou que não admita a existência de tribunais com origem e legitimidade popular e local. Este direito de proveniência não-estatal, mormente o direito consuetudinário e jurisprudencial, representa, para o liberalismo, o princípio do direito natural, entendido este como o conjunto das normas da vida humana e social, resultantes da própria dimensão moral e ética da natureza humana, bem como da ordenação social espontânea, que o direito positivo não poderá deixar de respeitar. E que, sensu lato, se enquadram, no fim de contas, nos três valores caros ao liberalismo que acima referimos: segurança, propriedade, liberdade individual. Se se reparar bem, muito do direito privado – desde os contratos, à família, às sucessões, já para não falar na propriedade, ainda que muito adulterados por sucessivas intervenções estatais, encontram os seus princípios nesta «ordem social espontânea». Isto é: o direito privado, por definição, consagra as soluções socialmente encontradas pelos indivíduos, para as muitas questões que se suscitam em cada um daqueles institutos.

Saber se o Estado está ou não disposto a aceitar estes parâmetros de actuação, é já um outro problema. Do ponto de vista do liberalismo, certamente que não está. Foi por essa razão que, nos séculos XVIII e XIX, os movimentos liberais foram exclusivamente constitucionais. Porque, a simples ordenação orgânica e funcional da soberania era, em contraponto ao Ancien Régime, um ganho de liberdade e um princípio de defesa dos direitos individuais. E é por essa mesma razão que volta a ser muito importante, nos nossos dias, debater a natureza do Estado, as suas funções e os seus limites.

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