Corrosivo e cientificamente implacável, como convém a um positivista esclarecido, conhecedor da inexistência de Deus e da indivisibilidade do átomo, Ricardo Alves incomodou-se com os meus «post» mais recentes sobre a propriedade como direito natural, e invectivou-me a explicar ««com exactidão», em que parte do córtex cerebral está o instinto/desejo de propriedade privada...». O desafio não podia ser mais aliciante e, tivesse eu as qualidades do António Damásio, aventurar-me-ia a seguir essa fascinate pista de investigação. Como as não tenho, não me resta senão tentar algumas sofríveis aproximações ao tema.
A contrario sensu, diria então que os regimes comunistas do século XX, que o Ricardo Alves certamente muito terá apreciado, implodiram porque negaram a propriedade privada aos cidadãos, formatando artificialmente a vida social em torno da ideia contranatura do colectivismo. Negaram-lhes, como é conhecido, a propriedade dos seus bens, dos seus serviços e dos frutos do seu trabalho. As sociedades comunistas geraram, também, reduzidas elites político-militares com acesso à propriedade (os «gestores» dos bens públicos), que escravizavam milhões de seres humanos, que trabalhavam sempre pelo mesmo prato de lentilhas ao fim do mês. Sem direito aos frutos do seu trabalho e do seu esforço, revertendo estes para um falso património social comum, verdadeiramente propriedade de uma reduzida elite burocrática e política (a «vanguarda do proletariado», para mantermos o léxico), as pessoas não tinham qualquer estimulo ao trabalho. Quando o Império implodiu, vitimado pela natureza intrínseca das suas muitas contradições (há que manter o léxico...), a propriedade privada regressou em força, generalizou-se, e passou a ser o princípio estruturante da reordenação social. Como, evidentemente, não poderia deixar de suceder, mais tarde ou mais cedo.
Mas não gostaria de me ficar apenas por deduções contraditórias. Conhecendo pouco destas coisas, lembro-me todavia de ter lido há uns anos uns livros de alguns etólogos, entre eles de Konrad Lorenz, Robert Ardey, Desmond Morris e Irenaus Eibl-Eibesfeldt, e de ter ficado espantado pela análise que faziam do comportamento inato de algumas espécies animais, sobretudo dos primatas, onde - pasme-se! - encontraram uma complexa organização social assente na delimitação de um (ou vários) territórios, com marcação do espaço próprio de cada animal, dos direitos inerentes a cada um dos animais do grupo habitante, com distribuição de tarefas entre eles, isto é, com repartição das funções sociais, com uma hierarquia vertical, e com uma afectação de recursos determinada pelo macho dominante do grupo. Alguns destes cientistas, sempre muito cuidadosos com a transposição dos princípios e das conclusões da etologia geral para uma eventual etologia humana (o que, apesar das cautelas, não deixaram de fazer), não se incomodavam em aceitar que a função do território na ordenação da vida dessas sociedades animais não estaria muito longe do papel que a propriedade desempenha nas sociedades humanas. Naquelas onde ela era um direito aceite e respeitado, obviamente.
Mas, admitindo que a macacada (estudava-se, então, muito os babuínos) não entusiasme por aí além o Ricardo Alves, sempre utilizaria um último argumento, que qualificaria de civilizacional: as sociedades da Europa e, na generalidade, as do mundo ocidental, sempre basearam a sua organização na propriedade privada. Vá lá ver o que já diziam os romanos de antes de Cristo (o tal que não é filho de Deus, como sabe) e o seu direito sobre o tema; estude depois a influência que tiveram na evolução do mundo ocidental (veja, por exemplo, a importância do direito romano renascido a partir do século XII em Bolonha e, a partir dela, em toda a Europa); passe os olhos sobre os foros, ou estatutos municipais medievais, caso não saiba, códigos de direito consuetudinário local, e verá o papel que as comunidades reservavam à propriedade privada. Se, a partir daí, prosseguir no estudo das sociedades e dos países ocidentais, encontrará sempre a propriedade privada como o vértice das principais questões sociais e políticas. Lei, por exemplo, a Magna Carta, de 1215, e medite um pouco sobre as exigências que os barões ingleses (esses fascistóides!) fizeram ao rei João.
Podemos assim dizer, glosando o seu certamente muito estimado Karl Marx, que a história do mundo é a história da propriedade privada. Se isto é um direito natural inscrito no córtex cerebral da nossa espécie, se no código genético dos primatas, se na tradição milenar das sociedades humanas, é que já não sei. Para tanto, francamente, não dou. Talvez um cientista mais apurado, pelo menos do calibre do grande Pavlov, me consiga um dia esclarecer.
A contrario sensu, diria então que os regimes comunistas do século XX, que o Ricardo Alves certamente muito terá apreciado, implodiram porque negaram a propriedade privada aos cidadãos, formatando artificialmente a vida social em torno da ideia contranatura do colectivismo. Negaram-lhes, como é conhecido, a propriedade dos seus bens, dos seus serviços e dos frutos do seu trabalho. As sociedades comunistas geraram, também, reduzidas elites político-militares com acesso à propriedade (os «gestores» dos bens públicos), que escravizavam milhões de seres humanos, que trabalhavam sempre pelo mesmo prato de lentilhas ao fim do mês. Sem direito aos frutos do seu trabalho e do seu esforço, revertendo estes para um falso património social comum, verdadeiramente propriedade de uma reduzida elite burocrática e política (a «vanguarda do proletariado», para mantermos o léxico), as pessoas não tinham qualquer estimulo ao trabalho. Quando o Império implodiu, vitimado pela natureza intrínseca das suas muitas contradições (há que manter o léxico...), a propriedade privada regressou em força, generalizou-se, e passou a ser o princípio estruturante da reordenação social. Como, evidentemente, não poderia deixar de suceder, mais tarde ou mais cedo.
Mas não gostaria de me ficar apenas por deduções contraditórias. Conhecendo pouco destas coisas, lembro-me todavia de ter lido há uns anos uns livros de alguns etólogos, entre eles de Konrad Lorenz, Robert Ardey, Desmond Morris e Irenaus Eibl-Eibesfeldt, e de ter ficado espantado pela análise que faziam do comportamento inato de algumas espécies animais, sobretudo dos primatas, onde - pasme-se! - encontraram uma complexa organização social assente na delimitação de um (ou vários) territórios, com marcação do espaço próprio de cada animal, dos direitos inerentes a cada um dos animais do grupo habitante, com distribuição de tarefas entre eles, isto é, com repartição das funções sociais, com uma hierarquia vertical, e com uma afectação de recursos determinada pelo macho dominante do grupo. Alguns destes cientistas, sempre muito cuidadosos com a transposição dos princípios e das conclusões da etologia geral para uma eventual etologia humana (o que, apesar das cautelas, não deixaram de fazer), não se incomodavam em aceitar que a função do território na ordenação da vida dessas sociedades animais não estaria muito longe do papel que a propriedade desempenha nas sociedades humanas. Naquelas onde ela era um direito aceite e respeitado, obviamente.
Mas, admitindo que a macacada (estudava-se, então, muito os babuínos) não entusiasme por aí além o Ricardo Alves, sempre utilizaria um último argumento, que qualificaria de civilizacional: as sociedades da Europa e, na generalidade, as do mundo ocidental, sempre basearam a sua organização na propriedade privada. Vá lá ver o que já diziam os romanos de antes de Cristo (o tal que não é filho de Deus, como sabe) e o seu direito sobre o tema; estude depois a influência que tiveram na evolução do mundo ocidental (veja, por exemplo, a importância do direito romano renascido a partir do século XII em Bolonha e, a partir dela, em toda a Europa); passe os olhos sobre os foros, ou estatutos municipais medievais, caso não saiba, códigos de direito consuetudinário local, e verá o papel que as comunidades reservavam à propriedade privada. Se, a partir daí, prosseguir no estudo das sociedades e dos países ocidentais, encontrará sempre a propriedade privada como o vértice das principais questões sociais e políticas. Lei, por exemplo, a Magna Carta, de 1215, e medite um pouco sobre as exigências que os barões ingleses (esses fascistóides!) fizeram ao rei João.
Podemos assim dizer, glosando o seu certamente muito estimado Karl Marx, que a história do mundo é a história da propriedade privada. Se isto é um direito natural inscrito no córtex cerebral da nossa espécie, se no código genético dos primatas, se na tradição milenar das sociedades humanas, é que já não sei. Para tanto, francamente, não dou. Talvez um cientista mais apurado, pelo menos do calibre do grande Pavlov, me consiga um dia esclarecer.
4 comentários:
O simples desejo em desejar a demonstração da inexistência do desejo de propriedade, é o desejo de propriedade da demonstração da inexistência do desejo de propriedade.
Não sei se me fiz compreender ... ehehe
Não necessariamente - quem quer demonstrar a inexistência do desejo de propriedade pode não pretender ter direitos de propriedade intelectual sobre essa demonstração.
Nem de outra forma poderia ser, como, aliás o demonstra a própria história da humanidade.
Não se trata de pretender ter direitos de propriedade intelectual. Trata-se simplesmente de desejo. O que quer que venha a seguir ao desejo, mesmo na estrofe de Camões (um cuidar que se ganha em se perder) é sempre adquirente, é a «posse» do que quer que seja. Aliás, vai da mais funda sobrevivência do homem ...
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