25 abril 2007

as putas do diabo


«As Putas do Diabo», o nome com que Lutero designava as bruxas do seu tempo por terem supostamente relações sexuais com o demónio, é o título de um interessante livro de Armelle Le Brás-Chopard, professora de Ciência Política, que trata de bruxaria e satanismo medievais, e que merece uma leitura atenta e sem preconceitos.
Indo directamente ao assunto nuclear da obra, a tese é a seguinte: as perseguições movidas pela Inquisição e pelos poderes públicos às bruxas foram motivadas menos por razões religiosas do que políticas. Tratou-se, segundo a autora, do processo encontrado pelos Estados europeus em formação e em rumo acelerado para a centralização do poder, de afirmarem a sua soberania e de esmagarem os direitos e a liberdade individuais. A razão por essa perseguição ter sido movida sobretudo às mulheres, que eram a esmagadora maioria dos «praticantes» de feitiçaria, deveu-se ao facto, por um lado, delas serem mais vulneráveis do que os homens, mas também porque a sociedade europeia medieval assentava muito na organização familiar matriarcal, sobre a qual os Estados emergentes necessitavam de impor a sua autoridade. A «caça às bruxas» terá sido, assim, movida mais por razões políticas do que por motivos religiosos, e marcou o fim do mundo medieval, abrindo espaço à transição da sociedade feudal para o Estado moderno. Diga-se, de resto, que a autora argumenta exemplarmente em defesa da sua tese.



Desde logo, há a registar o facto dos tribunais que julgavam os crimes de feitiçaria se dividirem, na generalidade dos países europeus, em duas jurisdições com competências diferenciadas: a religiosa, que apreciava a matéria de facto, onde se encontravam juízes do clero, e a estadual, que declarava o direito aplicável e onde tinham assento juízes seculares. A ingerência do Estado na nomeação e controlo dos primeiros era a regra geral. No caso da célebre Inquisição espanhola, que era, de facto, um tribunal eclesiástico, a nomeação dos inquisidores era da inteira responsabilidade do rei, limitando-se Roma a ratificar os nomes indicados. Já em França, onde Henrique II tentou reproduzir o modelo espanhol, a fim de evitar qualquer dependência de Roma, a Igreja acabou por ser completamente afastada, ao ponto dos processos de bruxaria se terem virado contra si e os seus prelados.
Cedo, na generalidade dos países europeus, os juízes seculares acabariam por suplantar os eclesiásticos, assumindo o controlo total dos processos desde a investigação, até à acusação. A Igreja acaba por ser não só devorada neste processo, como é mesmo atacada pelo poder público do rei, que assim a submete à sua autoridade cada vez mais absoluta. Através das acusações de bruxaria de que, progressivamente com maior frequência, os clérigos começaram a ser vítimas, foi-lhes retirado um dos poucos privilégios que possuíam ainda perante o poder do Estado: o foro eclesiástico, isto é, a prerrogativa de serem julgados pelos seus próprios tribunais. Deste modo, a «caça às bruxas» serviu não só a centralização régia em curso, como também acabou por ser um forte instrumento de laicização do Estado. De facto, e não por acaso, coube a Jean Bodin, o primeiro teorizador da soberania (Les Six Livres de la Republique), ter sido também um dos primeiros autores a escrever um tratado sobre feitiçaria (De la Démonomanie dês Sorciers), onde, por sinal, defendia a inteira estatização dos respectivos processos judiciais.
Quando, no final do século XVII, os processos por bruxaria são proibidos em toda a Europa, já o Estado moderno se encontrava implantado, e o poder absoluto dos reis solidamente firmado. Nessa altura, a legitimidade do Estado e dos monarcas decorre já directamente da vontade de Deus, e não tem que ser transmitida pelo Papa. Por sua vez, o individualismo e a autonomia local próprios do mundo medieval estavam completamente domesticados pelo poder público dos monarcas. A soberania triunfara sobre o indivíduo. As prisões na Alemanha, em França e por essa Europa fora estavam cheias de «bruxas» e de «bruxos». Havia que dar espaço a outros, nomeadamente aos «inimigos do Estado».



P.S.: Depois de ter lido o livro e escrito este «post» reparei, quase por acaso, que Pedro Arrojaescrevera sobre o assunto, um pouco nesta linha. O que quase o transformou, nessa altura, num Torquemada da blogosfera portuguesa.

8 comentários:

Anónimo disse...

É sem duvida uma obra apaixonante, lesse num fôlego. Uma denúncia da misoginia ainda latente nas nossas sociedades ditas laicas e igualitárias, onde a imagem da bruxa, encarnada pela mulher emancipada, desejosa de se libertar da opressão masculina, continua largamente presente no inconsciente colectivo. Além do mais a visão da mulher como um ser que necessita de ser colocado sob tutela, para não ser perigoso, é uma ideia subliminar no discurso machista e desqualificador de Pedro Arroja.
maria joão

FMS disse...

MJ,

"lê-se" e não "lesse".

De resto não sei se concordo com tudo.

Anónimo disse...

Caro Rui. A,

Pode ler as coisas da forma mais conveninete. Pode ler que era o estado que levava a Igreija ou que era a Igreija que levava o estado.

A base do problema é a mesma. A não separação entre a Igreija e o Estado. Uns usam-se aos outros para controlar o indivíduo.

Ricardo Francisco

FMS disse...

"Igreja" e nao "Igreija".

Anónimo disse...

Então Ringthane toca a pensar!

Anónimo disse...

Entre os seculos XV e XVII, os processos de bruxaria conduzem à fogueira sobretudo mulheres, que representam oitenta por cento das condenações. Os tratados de demonolia, escritos por teólogos, inquisidores ou magistrados a partir de confissões obtidas sob tortura, descrevem as práticas a que as buxas se entregam. Porém, para a autora, a feminilidade e o perigo que ela representa foram o verdadeiro móbil desta perseguição. Um fenomeno mais político do que religioso, que levou à construção no masculino do Estado moderno, e que desapareceria apenas qunado as bruxas deixaram de ser necessárias, ou seja, quando as mulheres foram colocadas sob tutela, o que as tornava menos perigosas.
maria joão

abrilistasanonimos disse...

É muito fácil divagar e dissertar sobre temas, este ou outro. Guiando-me apenas pelo post, pois não conheço a obra, fica-me a ideia de muita superficialidade.
Isto porque, de muitas formas, o assunto é actual. Esmagadora e assustadoramente actual. Basta conhecer a sociedade de forma transversal, longitudinal, tudo menos a superfície em que teimosamente nos ficamos. É tão cómodo...
Analisem por exemplo a despercebida tentativa do então Cardeal Ratzinger para "afastar as mulheres da zona do Altar" como imbecilmente a nossa imprensa transcreveu.
Ninguém lhe pegou. Uns por ignorância absoluta, outros porque não convem.
Analisem, por exemplo, porque a Igreja retirou a água benta da entrada dos templos. Isto só para uma pequena - muito pequena - amostra.
Desculpem, mas a mediocridade irrita-me profundamente.

Anónimo disse...

O texto é interessante e de suma importância histórica, portanto de leitura enjoada pelo fato de varios tils e "As" maiúsculas que enchem o visual do leitor.