A associação ancestral da ideia de Deus ao exercício do poder dos homens não foi fruto do acaso ou resultado da vontade de uma qualquer igreja, seita ou associação de culto. Como, desde sempre, Deus (ou os deuses) foi uma imanência do género humano e a explicação para muito do que, de bem ou de mal, os homens faziam, acabou por se tornar num «produto» apetecível, diria mesmo, necessário, para a legitimação do poder público. Em boa verdade, quando os romanos antigos fundamentavam o seu primeiro direito nos «mores maiorum», ou seja, nos costumes ancestrais da cidade, que se confundiam no tempo mítico da fundação da civitas e com as divindades, ou quando S. Paulo, e toda a Idade Média como ele, reclamava que «omnis potestas a Deo», ou, ainda, quando os reis do absolutismo, na esteira de Luís XIV, proclamavam que o Estado era coisa sua, como soberanos representantes de Deus na Terra, eles estavam a dar resposta à mais difícil pergunta que o poder público encerra: porque razão pode um homem coagir outro à sua vontade, e pretender que esse exercício seja legítimo, isto é, acatado pelos demais?
Os contratualistas do Renascimento e dos séculos que se lhe seguiram não abandonaram a legitimidade divina do poder. Apesar de distinguirem a cidade dos homens da cidade de Deus, era sempre a ideia de bem - do bem comum, do bem da república, do bem individual -, que subjazia às suas teorias de instituição da polis. Essa ideia era profundamente moralista, e baseava-se numa distinção dicotómica - a do bem e do mal -, que, na nossa civilização, estava por esse tempo parametrizada pelo cristianismo e pelas Igrejas legatárias da Revelação, estas últimas, sobretudo a Igreja Católica, em permanente disputa temporal com os príncipes pela autoridade da interpretação. Não por acaso, os instituidores da nova forma de organização política das treze colónias da América do Norte, na Declaração de Independência de 4 de Julho de 1776, reclamam o testemunho do «Supreme Judge of the World for the Rectitude of our Intentions», o mesmo é dizer, imputam a Deus a fundação dos Estados Unidos da América. A partir daqui, proclamada a independência e, com ela, constituída uma nova entidade política fundada por homens de recta intenção, defensores de direitos naturais tutelados, logo, legitimados por Deus, o exercício do poder passou a decorrer desse primeiro acto fundador, sem necessidade de qualquer outra explicação suplementar. Razão pela qual o nome de Deus não figura na Constituição americana de 1776. Invocando o seu nome e a sua autoridade, as colónias cindiram com a potência colonial que as criara e mantinha sob tutela, os Estados Unidos da América tornaram-se independentes, e os constituintes sentiram-se «autorizados» a redigir e a aprovar a Constituição. A legitimidade de Deus era originária e mais do que suficiente.
A Revolução Francesa trouxe, pela mão de Emmanuel Joseph Sieyès, clérigo representante da Igreja e da aristocracia nos Estados Gerais, uma dificuldade adicional à legitimação do poder público: a sua divisão em «pouvoir constituant» e «pouvoir constitué». Naturalmente, embora o segundo decorresse forçosamente do primeiro, a instituição deste último e o exercício daquele teriam de pertencer a entidades distintas e de responder a diferentes autoridades. Desaparecido Deus, reclamada em sua substituição a «volonté générale» de Rousseau, o poder, todo o poder, o de instituir, legitimar e governar, passou a ter um só fundamento e uma única fonte. A partir daí torna-se apropriável por um único soberano: o povo, na versão rousseauniana, ou um tirano, na versão de Bonaparte ou de outro qualquer, que, à boa maneira do seu antecessor Luís, proclamou «je suis le pouvoir constituant». O mesmo quer dizer: o «´L'État c'est moi».
Perdida a fundamentação transcendente do poder, o século XX dispersou-se na busca de uma nova razão legitimadora. Em bom rigor, iniciada um pouco antes por Weber, com o seu tríptico legitimador da autoridade do príncipe. Todas essas razões eram humanas, demasiadamente humanas. Mais tarde, os técnicos do direito haveriam de procurar uma nova metafísica para o poder, sobretudo para o poder democrático. De todas, a que mais se aproximou de Deus foi a Grundnorm kelseniana, forma etérea e indeterminada, quase divina, de explicar o fundamento do direito, o mesmo é dizer, dos poderes constituídos de Sieyès. As outras explicações, as democráticas e as anti-democráticas, coincidiram sempre, ao longo do século XX, no fundamento rousseuniano da vontade geral do povo.
De então para cá, dessacralizado, o poder voltou a ser um instrumento na inteira disponibilidade da racionalidade humana: de um, de alguns, ou da multidão. Perdeu um critério superior de limitação e de aferimento valorativo. Exerce-se em nome da razão e já não em nome de um valor transcendente. É e será, por isso, o que essa «racionalidade» ditar, mesmo que passe por cima dos direitos individuais mais elementares, o que, de resto, faz frequentemente sem escrúpulo, em nome da totalitária «razão de Estado» ou da democrática «vontade da maioria».
Por conseguinte, quer Ele exista quer não (não é isso que está, ou que alguma vez esteve verdadeiramente em causa na arte do poder), a ideia de Deus é capaz de voltar a ser necessária se quisermos refrear a soberania.
Os contratualistas do Renascimento e dos séculos que se lhe seguiram não abandonaram a legitimidade divina do poder. Apesar de distinguirem a cidade dos homens da cidade de Deus, era sempre a ideia de bem - do bem comum, do bem da república, do bem individual -, que subjazia às suas teorias de instituição da polis. Essa ideia era profundamente moralista, e baseava-se numa distinção dicotómica - a do bem e do mal -, que, na nossa civilização, estava por esse tempo parametrizada pelo cristianismo e pelas Igrejas legatárias da Revelação, estas últimas, sobretudo a Igreja Católica, em permanente disputa temporal com os príncipes pela autoridade da interpretação. Não por acaso, os instituidores da nova forma de organização política das treze colónias da América do Norte, na Declaração de Independência de 4 de Julho de 1776, reclamam o testemunho do «Supreme Judge of the World for the Rectitude of our Intentions», o mesmo é dizer, imputam a Deus a fundação dos Estados Unidos da América. A partir daqui, proclamada a independência e, com ela, constituída uma nova entidade política fundada por homens de recta intenção, defensores de direitos naturais tutelados, logo, legitimados por Deus, o exercício do poder passou a decorrer desse primeiro acto fundador, sem necessidade de qualquer outra explicação suplementar. Razão pela qual o nome de Deus não figura na Constituição americana de 1776. Invocando o seu nome e a sua autoridade, as colónias cindiram com a potência colonial que as criara e mantinha sob tutela, os Estados Unidos da América tornaram-se independentes, e os constituintes sentiram-se «autorizados» a redigir e a aprovar a Constituição. A legitimidade de Deus era originária e mais do que suficiente.
A Revolução Francesa trouxe, pela mão de Emmanuel Joseph Sieyès, clérigo representante da Igreja e da aristocracia nos Estados Gerais, uma dificuldade adicional à legitimação do poder público: a sua divisão em «pouvoir constituant» e «pouvoir constitué». Naturalmente, embora o segundo decorresse forçosamente do primeiro, a instituição deste último e o exercício daquele teriam de pertencer a entidades distintas e de responder a diferentes autoridades. Desaparecido Deus, reclamada em sua substituição a «volonté générale» de Rousseau, o poder, todo o poder, o de instituir, legitimar e governar, passou a ter um só fundamento e uma única fonte. A partir daí torna-se apropriável por um único soberano: o povo, na versão rousseauniana, ou um tirano, na versão de Bonaparte ou de outro qualquer, que, à boa maneira do seu antecessor Luís, proclamou «je suis le pouvoir constituant». O mesmo quer dizer: o «´L'État c'est moi».
Perdida a fundamentação transcendente do poder, o século XX dispersou-se na busca de uma nova razão legitimadora. Em bom rigor, iniciada um pouco antes por Weber, com o seu tríptico legitimador da autoridade do príncipe. Todas essas razões eram humanas, demasiadamente humanas. Mais tarde, os técnicos do direito haveriam de procurar uma nova metafísica para o poder, sobretudo para o poder democrático. De todas, a que mais se aproximou de Deus foi a Grundnorm kelseniana, forma etérea e indeterminada, quase divina, de explicar o fundamento do direito, o mesmo é dizer, dos poderes constituídos de Sieyès. As outras explicações, as democráticas e as anti-democráticas, coincidiram sempre, ao longo do século XX, no fundamento rousseuniano da vontade geral do povo.
De então para cá, dessacralizado, o poder voltou a ser um instrumento na inteira disponibilidade da racionalidade humana: de um, de alguns, ou da multidão. Perdeu um critério superior de limitação e de aferimento valorativo. Exerce-se em nome da razão e já não em nome de um valor transcendente. É e será, por isso, o que essa «racionalidade» ditar, mesmo que passe por cima dos direitos individuais mais elementares, o que, de resto, faz frequentemente sem escrúpulo, em nome da totalitária «razão de Estado» ou da democrática «vontade da maioria».
Por conseguinte, quer Ele exista quer não (não é isso que está, ou que alguma vez esteve verdadeiramente em causa na arte do poder), a ideia de Deus é capaz de voltar a ser necessária se quisermos refrear a soberania.
4 comentários:
Um excelente post manchado apenas por uma gralha no título:"rosseau".
Agradeço-lhe ter-me feito reparar no lapso involuntário. Muito obrigado
Os bons posts são mesmo assim: ensinam-nos alguma coisa!
Obrigado por este!
Not only that, a roach was found in my sons beans.Eight others were awarded 31year imprisonment, while 22 convicts got 24 years prison term. [url=http://pascherkjhkhk.webnode.fr]sac longchamp[/url] '' The message Mrs.Obama said this week he wouldn't judge the new moves until he heard directly from Mexican officials. [url=http://pascherkjhkhk.webnode.fr]longchamp soldes[/url] He joined Cumbrian Newspapers on a sixyear apprenticeship as a compositor and he served his time, with two years' National Service in the RAF intervening.He said the squad is often the first contact for those with information on things such as the distribution of highpotency heroin and people wanted on warrants for serious offences. [url=http://ghdsale1.webspawner.com]ghd sale[/url] Nairobi (Kenya), l Park a ?Ese es uno de nuestros desafos ms grandes", dijo Richard Fitzgerald, gerente de proyectos de la Universidad John Hopkins. [url=http://christianlouboutinsale.webspawner.com]louboutin pumps[/url] Less than a third of the land will be developed, while the remainder is dedicated to nature reserves, lakes, parks, golf courses and recreational areas.A pro once told me that it doesn't matter what club you gave him, he would always score under 80, but he would do it more easily with a better club. [url=http://discountlongchamps1.webnode.fr]discountlongchamps1.webnode.fr[/url] Vivement qu'advienne 2012, avec son lot de surprises!About 30 million years ago, the plate carrying the Pacific Ocean floor collided with the plate supporting the North American continent.[url=http://ghingkiollo.webeden.co.uk]ghd straighteners[/url] " EACH has a required annual income of 5.18 at 9114 Strada Place, North Naples. [url=http://christianlouboutinsale.webspawner.com]christian louboutin sale[/url] Just try and stick to low GI to keep my blood sugar low and if im in uni 10am midnight i try and have the geobar from the vending machine instead of a 1 pack of buttons Anyway ive got some month to month (jan 7th to feb 7th) progress pictures, bit % coz ones at my parents house ones at my house.Most people who are seeking knowledge of Lemuria or who are drawn to Peru may subconsciously be reconnecting to a past life memory of that place.
Enviar um comentário