Caro Pedro,
Permita-me que lhe diga que me parece que o seu «post» assenta num equívoco: a barreira das dez semanas já lá está, já existe, foi imposta pelo legislador português, isto é, pelo Estado, na lei actualmente em vigor. O referendo não a vai inventar e, como sabe, em certas situações, até às dez semanas, o aborto é consentido em Portugal. Ora, do ponto de vista de quem quer manter a sanção penal para o crime utilizando a vida humana do embrião como argumento, entende-se com dificuldade a aceitação das três excepções legais em vigor. Lembro-lhe, de resto, que quando elas foram introduzidas na lei actual tiveram, também, a oposição activa dos mesmos sectores que hoje se opõem à despenalização fora das situações que outrora contestavam. Diga-se, em abono da verdade, então, com muito mais coerência do que hoje.###
Também não parece exacto que a nossa tradição cristã vá unanimemente no sentido de considerar a existência de vida, pelo menos de vida com «animus», com alma, desde o momento da concepção. Há uma corrente na Igreja Católica, que ainda há bem pouco tempo se manifestava, em favor da tese da «hominização tardia». S. Agostinho seguiu-a e comparava o feto não formado «às folhas que não tinham frutificado». S. Tomás afirmava que a «alma» incorporava muito depois da concepção, quando o feto tivesse já adquirido forma humana completa, isto é, depois das referidas dez semanas de gravidez. Numa das compilações do Corpus Iuris Canonici, em vigor até 1917, no Decretum de Graciano (1140) podia ler-se que «o aborto só é homicídio quando o feto está formado». Poder-se-á alegar, como alguns católicos têm feito acesamente, que naqueles tempos não havia ciência suficiente para se saber o que hoje se sabe sobre a vida intra-uterina. Mas não duvide, caro Pedro, que tanto S. Agostinho, como Graciano, como S. Tomás, sabiam bem o que era a concepção e também não ignoravam que desde esse momento existe vida. Só que, para eles, vida sem alma, coisa esta que nem mesmo a ciência de hoje poderá comprovar. Mais recentemente, já no século XX, outros homens da Igreja Católica têm-se mantido seguidores dessa tese. O Padre Karl Rahner, jesuíta (sempre os jesuítas, meu caro!) e teólogo, escreveu em 1962 que: «Nenhum teólogo pode pretender provar que a interrupção de uma gravidez, ou seja a realização do aborto, seria em toda e qualquer circunstância o assassinato de um ser humano». O Padre Joseph Donceel, ele também teólogo de século XX e um tomista confesso, retoma a teoria da «hominização retardada ou tardia», dizendo mesmo que «o embrião não é desde logo uma pessoa humana nas primeiras semanas de gravidez».
Não o querendo maçar mais, e tendo para mim como assente que o que se vai referendar é a lei estatal que está em vigor e, especialmente, a pena de prisão que ela determina para quem aborte dentro do prazo legal imposto (as tais dez semanas), atrevo-me a propor-lhe o exercício seguinte. Se lhe fosse possível escolher, o que é que preferia: a lei actual; a lei actual sem sanção penal; ou lei nenhuma? Por mim, como liberal, não teria nenhuma dúvida em responder a terceira hipótese. Na impossibilidade de o fazer, dada a legislação em vigor do Estado português, optarei pela segunda.
Permita-me que lhe diga que me parece que o seu «post» assenta num equívoco: a barreira das dez semanas já lá está, já existe, foi imposta pelo legislador português, isto é, pelo Estado, na lei actualmente em vigor. O referendo não a vai inventar e, como sabe, em certas situações, até às dez semanas, o aborto é consentido em Portugal. Ora, do ponto de vista de quem quer manter a sanção penal para o crime utilizando a vida humana do embrião como argumento, entende-se com dificuldade a aceitação das três excepções legais em vigor. Lembro-lhe, de resto, que quando elas foram introduzidas na lei actual tiveram, também, a oposição activa dos mesmos sectores que hoje se opõem à despenalização fora das situações que outrora contestavam. Diga-se, em abono da verdade, então, com muito mais coerência do que hoje.###
Também não parece exacto que a nossa tradição cristã vá unanimemente no sentido de considerar a existência de vida, pelo menos de vida com «animus», com alma, desde o momento da concepção. Há uma corrente na Igreja Católica, que ainda há bem pouco tempo se manifestava, em favor da tese da «hominização tardia». S. Agostinho seguiu-a e comparava o feto não formado «às folhas que não tinham frutificado». S. Tomás afirmava que a «alma» incorporava muito depois da concepção, quando o feto tivesse já adquirido forma humana completa, isto é, depois das referidas dez semanas de gravidez. Numa das compilações do Corpus Iuris Canonici, em vigor até 1917, no Decretum de Graciano (1140) podia ler-se que «o aborto só é homicídio quando o feto está formado». Poder-se-á alegar, como alguns católicos têm feito acesamente, que naqueles tempos não havia ciência suficiente para se saber o que hoje se sabe sobre a vida intra-uterina. Mas não duvide, caro Pedro, que tanto S. Agostinho, como Graciano, como S. Tomás, sabiam bem o que era a concepção e também não ignoravam que desde esse momento existe vida. Só que, para eles, vida sem alma, coisa esta que nem mesmo a ciência de hoje poderá comprovar. Mais recentemente, já no século XX, outros homens da Igreja Católica têm-se mantido seguidores dessa tese. O Padre Karl Rahner, jesuíta (sempre os jesuítas, meu caro!) e teólogo, escreveu em 1962 que: «Nenhum teólogo pode pretender provar que a interrupção de uma gravidez, ou seja a realização do aborto, seria em toda e qualquer circunstância o assassinato de um ser humano». O Padre Joseph Donceel, ele também teólogo de século XX e um tomista confesso, retoma a teoria da «hominização retardada ou tardia», dizendo mesmo que «o embrião não é desde logo uma pessoa humana nas primeiras semanas de gravidez».
Não o querendo maçar mais, e tendo para mim como assente que o que se vai referendar é a lei estatal que está em vigor e, especialmente, a pena de prisão que ela determina para quem aborte dentro do prazo legal imposto (as tais dez semanas), atrevo-me a propor-lhe o exercício seguinte. Se lhe fosse possível escolher, o que é que preferia: a lei actual; a lei actual sem sanção penal; ou lei nenhuma? Por mim, como liberal, não teria nenhuma dúvida em responder a terceira hipótese. Na impossibilidade de o fazer, dada a legislação em vigor do Estado português, optarei pela segunda.
1 comentário:
5. « Deus não fez a morte, nem se alegra que pereçam os vivos » (Sab. 1, 13). É certo que Deus criou seres que não têm senão uma duração limitada e que a morte física não pode estar ausente do mundo dos viventes corporais. Mas, aquilo que é querido, antes de mais nada, é a vida; e, no universo visível, tudo foi feito em vista do homem, imagem de Deus e coroamento do mundo (cfr. Gén. 1, 26-28). No plano humano, foi « por inveja do demónio que a morte entrou no mundo » (Sab. 2, 24); introduzida pelo pecado, ela permanece a ele ligada; ela é dele o sinal e o fruto. No entanto, ela não poderá triunfar. Confirmando a fé na ressurreição, o Senhor proclamará no Evangelho que « Deus ... não é o Deus dos mortos, mas dos vivos » (Mt. 22, 32-33); e a morte, bem como o pecado, será vencida, definitivamente, pela ressurreição em Cristo (cfr. 1 Cor. 15, 20-27). Compreende-se assim que a vida humana, mesmo sobre a terra, seja algo precioso. Insuflada pelo Criador,[5] é por Ele que ela será reassumida (cfr. Gén. 2, 7; Sab. 15, 11). Ela permanece sob a sua protecção; o sangue do homem clama por Ele (cfr. Gén. 4, 10) e Ele pedirá contas desse sangue, « porque o homem foi criado à semelhança de Deus » (Gén. 9, 5-6). 0 mandamento de Deus é formal: « Não matarás » (Ex. 20, 13). Ao mesmo tempo que é um dom, a vida é também uma responsabilidade: recebida como um « talento » (cfr. Mt. 25, 14-30), ela deve ser posta a render. Para a fazer frutificar, muitas são as tarefas que ao homem se apresentam neste mundo, às quais ele não deve furtar-se; mas, de uma maneira mais profunda ainda, para o cristão, pois ele sabe bem que a vida eterna para ele depende daquilo que, com a graça de Deus, fizer durante a sua vida sobre a terra.
6. A tradição da Igreja sempre considerou a vida humana como algo que deve ser protegido e favorecido, desde o seu início, do mesmo modo que durante as diversas fases do seu desenvolvimento. Opondo-se aos costumes greco-romanos, a Igreja dos primeiros séculos insistiu na distância que, quanto a este ponto, separa deles os costumes cristãos. No livro chamado Didaché diz-se claramente: « Tu não matarás, mediante o aborto, o fruto do seio; e não farás perecer a criança já nascida » [6] . Atenágoras frisa bem que os cristãos têm na conta de homicidas as mulheres que utilizam medicamentos para abortar; ele condena igualmente os assassinos de crianças, incluindo no número destas as que vivem ainda no seio materno, « onde elas já são objecto da solicitude da Providência divina » [7] . Tertuliano não usou, talvez, sempre a mesma linguagem; contudo, não deixa também de afirmar, com clareza, o princípio essencial: « É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer; pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda para nascer. É já um homem aquele que o virá a ser » [8] .
7. E no decorrer da história, os Padres da Igreja, bem como os seus Pastores e os seus Doutores, ensinaram a mesma doutrina, sem que as diferentes opiniões acerca do momento da infusão da alma espiritual tenham introduzido uma dúvida sobre a ilegitimidade do aborto. É certo que, na altura da Idade Média em que era opinião geral não estar a alma espiritual presente no corpo senão passadas as primeiras semanas, se fazia uma distinção quanto à espécie do pecado e à gravidade das sanções penais. Excelentes autores houve que admitiram, para esse primeiro período, soluções casuísticas mais suaves do que aquelas que eles davam para o concernente aos períodos seguintes da gravidez. Mas, jamais se negou, mesmo então, que o aborto provocado, mesmo nos primeiros dias da concepção fosse objectivamente falta grave. Uma tal condenação foi de facto unânime. De entre os muitos documentos, bastará recordar apenas alguns. Assim: o primeiro Concílio de Mogúncia, em 847, confirma as penas estabelecidas por Concílios precedentes contra o aborto; e determina que seja imposta a penitência mais rigorosa às mulheres « que matarem as suas crianças ou que provocarem a eliminação do fruto concebido no próprio seio » [9] . O Decreto de Graciano refere estas palavras do Papa Estêvão V: « É homicida aquele que fizer perecer, mediante o aborto, o que tinha sido concebido »[10] . Santo Tomás, Doutor comum da Igreja, ensina que o aborto é um pecado grave contrário à lei natural [11] . Nos tempos da Renascença, o Papa Sisto V condena o aborto com a maior severidade [12] . Um século mais tarde, Inocêncio XI reprova as proposições de alguns canonistas « laxistas », que pretendiam desculpar o aborto provocado antes do momento em que certos autores fixavam dar-se a animação espiritual do novo ser [13] Nos nossos dias, os últimos Pontífices Romanos proclamaram, com a maior clareza, a mesma doutrina. Assim: Pio XI respondeu explicitamente às mais graves objecções;[14] Pio XII excluiu claramente todo e qualquer aborto directo, ou seja, aquele que é intentado como um fim ou como um meio para o fim;[15] João XXIII recordou o ensinamento dos Padres sobre o carácter sagrado da vida, « a qual, desde o seu início, exige a acção de Deus criador » [16] . E bem recentemente, ainda, o II Concílio do Vaticano, presidido pelo Santo Padre Paulo VI, condenou muito severamente o aborto: « A vida deve ser defendida com extremos cuidados, desde a concepção: o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis » [17] . O mesmo Santo Padre Paulo VI, ao falar, por diversas vezes, deste assunto, não teve receio de declarar que a doutrina da Igreja « não mudou; e mais, que ela é imutável »[18] .
Francisco Cardeal Seper
Prefeito
Jerónimo Hamer
Arcebispo titular de Lorium
Secretário
Enviar um comentário