14 fevereiro 2006

um erro liberalmente fatal

A leitura do último livro de Francis Fukuyama, publicado em 2004 nos Estados Unidos, e traduzido este ano para português com o assustador título «A Construção de Estados – Governação e Ordem Mundial no Século XXI» (diga-se, em abono da verdade e da editora, que se trata da tradução ipsis verbis do título original), provocou-me uma sensação de desconforto e mal-estar intelectual.
Vá-se lá saber porquê, Fukuyama goza nalguns círculos da fama de ser um autor liberal. Talvez por ter escrito um livro (vincadamente historicista) onde afirmava o domínio global e definitivo do que entendia ser a «democracia liberal», talvez por citar e referir a espaços Hayek e Mises, ou, quem sabe, por ir dizendo que os Estados dispõem de funções excessivas e que há que fazer com que elas diminuam. Isto que aparentemente assinalaria o princípio de um espírito liberal é, contudo, claramente insuficiente, ou mesmo perversamente perigoso, como, de resto o próprio Fukuyama cuida de demonstrar no livro referido.
A tese desenvolvida ao longo dessa obra é simples de enunciar: os Estados contemporâneos têm vindo a exceder as funções sociais que desempenham e, por isso, há que equacioná-los em funções determinadas e socialmente úteis, mas, uma vez feita essa adaptação, têm de estar dotados de instituições públicas fortes, sob pena de baquearem e tornarem-se ineficientes, senão mesmo perigosos por insuficiência de poder. Ao longo das quase cento e cinquenta páginas da edição portuguesa, o autor não se cansa de repetir esta ideia. Quando, por exemplo, faz referência às reformas liberalizadoras da década de 80 e, em parte, de 90, afirma que «o verdadeiro problema era que, se os Estados precisavam de ser reduzidos em certas áreas, precisavam simultaneamente de ser fortalecidos noutras». Mais adiante, acrescenta: «Houve muito poucos alertas da parte dos responsáveis sediados em Washington sobre os perigos da liberalização na ausência de instituições adequadas». E, por fim, concluí: «Mas o que é mais urgente para a maioria dos países em desenvolvimento é aumentar a força básica das suas instituições públicas, para que desempenhem aquelas funções fundamentais que só os Estados podem desempenhar».
Fukuyama chama a isto a «teoria da construção dos Estados». Pondo de parte a imediata crítica liberal que necessariamente teria de ser feita a esta e a quaisquer outras formas de engenharia ou construtivismo social e político, quedemo-nos pela análise dos próprios erros da sua teoria e vejamos porque razão ela é, na verdade, uma tese estatista, intervencionista e anti-liberal.
Comecemos por recordar outro sociólogo, Max Weber, insuspeito de inclinações liberais, e vejamos o que ele nos diz sobre o Estado e os seus célebres «fins»: «Não é possível definir uma associação política – nem sequer o Estado – pela alegação do fim da acção associativa. Desde a solicitude pelos meios de subsistência até à protecção da arte, desde a garantia da segurança pessoal até à administração da justiça, não houve fim algum que ocasionalmente não tenha sido perseguido pelas associações políticas. Por isso, só pode definir-se o carácter «político» de uma associação pelo meio – elevado em certas circunstâncias em fim em si – que, sem lhe ser peculiar, é decerto específico e indispensável à sua essência: a violência» («Conceitos Sociológicos Fundamentais»)
Ora, chegados a este ponto parece evidente que enquanto mantivermos a perspectiva de que o Estado tem que ser forte para nos assegurar a liberdade, a propriedade, os nossos direitos fundamentais e outros que eventualmente sejam socialmente contratualizados, estaremos inevitavelmente a deixar ao juízo unilateral de quem governa o que há-de fazer aos seus governados. Isto é, a escolha dos «fins» que deverá prosseguir, «a bem da Nação». Esta tem sido, de facto, a história recente do estatismo: a convicção da utilidade social do Estado e da inoponibilidade de limites rigorosos à sua actuação, sobretudo, da sua quase ilimitada intervenção legislativa.
Uma teoria liberal não pode, por conseguinte, propor a «construção» e o fortalecimento do Estado. Pelo contrário terá de desenvolver uma teoria de «desconstrução» e de enfraquecimento do monstro em que ele se tronou no século passado. Para isso só há uma solução: obrigar o Estado a privatizar ao máximo possível o sector público, permitir e aumentar a liberdade negocial e contratual assente no direito privado, impor limites constitucionais ao intervencionismo estatal. Não é tarefa fácil, como, em Portugal, estamos a ver pelas reacções à OPA sobre essa empresa «privada» que é a PT, mas é o único possível.
Em suma, do que as sociedades modernas precisam se querem aumentar a sua liberdade, é de instituições privadas fortes e não de instituições públicas fortes. Este erro de Fukuyama, que afecta muita gente de direita, sobretudo da direita mais conservadora, consiste em julgar que o Estado, ele mesmo, imporá limites razoáveis ao seu poder. Ora a racionalidade do poder, como bem evidenciou Weber (e, já agora, Bertrand de Jouvenel e Hannah Arendt), é o crescimento e a expansão. Pensar nesses termos é um erro grave. Um erro liberalmente fatal, em conclusão.

4 comentários:

rui a. disse...

Caro Hugo Mendes,

Sobre o crash de 29, sugiro-lhe a leitura do que escreveu sobre o assunto Milton Friedman. É capaz de ser obrigado a rever algumas ideias que eventualmente possa ter sobre o tema, nomeadamente sobre a responsabilidade do governo americano na inflacção que originou essa crise.

Cumprimentos,

Anónimo disse...

Caro Rui


Reconhecendo-me numa posição política Liberal e de Direita não posso deixar de lhe colocar algumas questões:
Entende porventura o meu caro, que a administração da Justiça e organização Judicial podem repousar noutras mãos que não nas do Estado soberano?
Acredita poder, a segurança publica, ser confiada a um particular a um “civies”?
Creio que não, eu pela minha parte recuso este pensamento.
A teoria do Estado Leviathã quando concebida por Hobbes apresentava o estado como um mostro a ser contido, não eliminado, desde tempos imemoriais que ao Príncipe competem tarefas elementares que só ele e apenas ele, pode assegurar para superior beneficio dos seus súbditos. A Justiça e a defesa armada do Estado interna e externamente devem ser regidas pelo ceptro soberano como à muito è de comum entendimento, o que já mais poderá significar que em todos as outras matérias os “Civies” não devam velar pela rigorosa abstenção do estado.
Pretendo desta forma afirmar que se o estado deve ser mínimo, não deve ser um completo ausente, pois da sua força no circulo restrito de funções que lhe competem depende o regular viver dos Cidadãos no nobre sentido que Roma lhe emprestou.

Luís Marvão disse...

O sociólogo Raymond Boudon inscreve Weber no pensamento ou tradição liberal.
Atribuir determinadas funções ao Estado não significa ser iliberal.
Pelo contrário, está fora da tradição liberal quem alega que o "Estado não tem utilidade social".

CN disse...

Caro Rui

Não poderia concordar mais, já tinha pensado comentar o livro.

Eu chamo a essa certa visão existente também em muitos liberais:

"A falácia do super-Estado minimo."