Não deixa de ser curioso constatar que uma boa parte do Ocidente que repudia os actos de barbárie recentemente ocorridos nalguns países islâmicos contra representações diplomáticas europeias, seja a mesma que enaltece a Palestina contra Israel, que condena as intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, que clama pela defesa da soberania do Irão na questão nuclear, ou que displicentemente costuma desculpar atitudes igualmente agressivas em relação aos norte-americanos.
Reiteradamente, os fundamentos encontrados para justificar aqueles comportamentos são políticos e culturais: contra a influência americana na zona, alicerçada no seu aliado Israel, e em defesa da especificidade cultural do islamismo que, em última instância, à luz desses olhos tolerantes, justifica os mais graves atentados à liberdade cívica, política e mesmo até de género sexual.
Sucede que o que nos distingue está muito além de simples opções políticas ou tradições culturais diversas. O Islão e o mundo muçulmano não diferenciam a sociedade da religião, o Estado da Igreja, a Cidade de Deus da Cidade dos Homens, em suma, o Céu e a Terra. Convém não esquecer que o fundador do islamismo, Maomé, foi simultaneamente um líder religioso e político. Foi o profeta a quem Alá ditou, ao longo de vinte e dois extensos anos, o Alcorão, mas foi também o conquistador de Medina, de Meca e o unificador da Arábia. O Alcorão é, de resto, não só um livro de preceitos religiosos, mas também de normas sociais, políticas e jurídicas. Não obstante as diversas Escolas jurisprudenciais do direito islâmico (Fiqh) se fundarem sobre a autoridade de juristas com diferentes interpretações do Corão, é sempre sobre este e os seus versículos que as decisões são tomadas. Por conseguinte, a liberdade individual não se concebe fora da esfera do divino: há que ter presente que «Islão» significa «submissão à vontade de Deus» e que um «muçulmano» é aquele que assume voluntariamente essa condição de sujeição. Para um crente, o fundamento primordial da sua existência individual – a «Jihad maior» - consiste no conflito interior que tem de travar ao longo de toda a vida para dominar a sua alma e evitar que ela resvale para o caminho impuro do mal. A outra «Jihad», a menor, é a guerra santa contra os inimigos expressos da fé, para a qual todos os muçulmanos se devem disponibilizar.
Os fundamentos do islamismo são, por conseguinte, totalitários. Não estabelecem, ao contrário do cristianismo, a distinção entre o temporal e o espiritual, o mundo terreno e o mundo divino. A dimensão humana é inseparável desses dois planos. A separação do «reino de Deus» e do «reino de César» não existem e, por isso, a esfera do divino invade a totalidade da existência humana. Tal como a sociedade e a sua forma de organização política, que não distingue o Estado laico do Estado religioso ou mesmo clerical, como sucede no Irão e sucedeu no Afeganistão dos talibans. Nessa medida, falar ao Islão nos valores do Homem, na liberdade individual, ou seja, em tudo que seja especificamente humano, é tocar-lhes num mundo cuja existência não reconhecem.
Como sucedeu isto com povos que, em tempos, foram expoentes de civilização, o que sempre obriga à prevalência da liberdade, é uma questão que poderá não ter uma única resposta, mas tem certamente uma causa principal. É que o que distingue estes dois mundos, agora e desde há muito em choque, é exactamente a natureza laica e religiosa de cada um deles. Enquanto que o cristianismo permitiu, pelos seus próprios fundamentos originais e por alguma da doutrina que dele se desenvolveu, a laicização das sociedades onde foi e é a religião dominante, o islamismo nascido no século VII tem, ao invés, seguido um caminho contrário. Se a isto associarmos um atraso civilizacional provocado por «colonizações» interesseiras, por uma geopolítica que criou Estados sociologicamente duvidosos e onde se instalaram autocracias ditatoriais suportadas nas oligarquias do petróleo, temos uma quase explicação para o óbvio atraso em que vivem os povos submetidos ao islamismo. Essa é, no fim de contas, a razão deste tipo de comportamentos: o subdesenvolvimento de povos inteiros, submetidos a um poder totalitário, que não separa a religião do homem, nem permite que o façam. A liberdade individual e cívica, tal e qual a concebemos, não tem aqui qualquer significado, nem é sequer um conceito inteligível.
Reiteradamente, os fundamentos encontrados para justificar aqueles comportamentos são políticos e culturais: contra a influência americana na zona, alicerçada no seu aliado Israel, e em defesa da especificidade cultural do islamismo que, em última instância, à luz desses olhos tolerantes, justifica os mais graves atentados à liberdade cívica, política e mesmo até de género sexual.
Sucede que o que nos distingue está muito além de simples opções políticas ou tradições culturais diversas. O Islão e o mundo muçulmano não diferenciam a sociedade da religião, o Estado da Igreja, a Cidade de Deus da Cidade dos Homens, em suma, o Céu e a Terra. Convém não esquecer que o fundador do islamismo, Maomé, foi simultaneamente um líder religioso e político. Foi o profeta a quem Alá ditou, ao longo de vinte e dois extensos anos, o Alcorão, mas foi também o conquistador de Medina, de Meca e o unificador da Arábia. O Alcorão é, de resto, não só um livro de preceitos religiosos, mas também de normas sociais, políticas e jurídicas. Não obstante as diversas Escolas jurisprudenciais do direito islâmico (Fiqh) se fundarem sobre a autoridade de juristas com diferentes interpretações do Corão, é sempre sobre este e os seus versículos que as decisões são tomadas. Por conseguinte, a liberdade individual não se concebe fora da esfera do divino: há que ter presente que «Islão» significa «submissão à vontade de Deus» e que um «muçulmano» é aquele que assume voluntariamente essa condição de sujeição. Para um crente, o fundamento primordial da sua existência individual – a «Jihad maior» - consiste no conflito interior que tem de travar ao longo de toda a vida para dominar a sua alma e evitar que ela resvale para o caminho impuro do mal. A outra «Jihad», a menor, é a guerra santa contra os inimigos expressos da fé, para a qual todos os muçulmanos se devem disponibilizar.
Os fundamentos do islamismo são, por conseguinte, totalitários. Não estabelecem, ao contrário do cristianismo, a distinção entre o temporal e o espiritual, o mundo terreno e o mundo divino. A dimensão humana é inseparável desses dois planos. A separação do «reino de Deus» e do «reino de César» não existem e, por isso, a esfera do divino invade a totalidade da existência humana. Tal como a sociedade e a sua forma de organização política, que não distingue o Estado laico do Estado religioso ou mesmo clerical, como sucede no Irão e sucedeu no Afeganistão dos talibans. Nessa medida, falar ao Islão nos valores do Homem, na liberdade individual, ou seja, em tudo que seja especificamente humano, é tocar-lhes num mundo cuja existência não reconhecem.
Como sucedeu isto com povos que, em tempos, foram expoentes de civilização, o que sempre obriga à prevalência da liberdade, é uma questão que poderá não ter uma única resposta, mas tem certamente uma causa principal. É que o que distingue estes dois mundos, agora e desde há muito em choque, é exactamente a natureza laica e religiosa de cada um deles. Enquanto que o cristianismo permitiu, pelos seus próprios fundamentos originais e por alguma da doutrina que dele se desenvolveu, a laicização das sociedades onde foi e é a religião dominante, o islamismo nascido no século VII tem, ao invés, seguido um caminho contrário. Se a isto associarmos um atraso civilizacional provocado por «colonizações» interesseiras, por uma geopolítica que criou Estados sociologicamente duvidosos e onde se instalaram autocracias ditatoriais suportadas nas oligarquias do petróleo, temos uma quase explicação para o óbvio atraso em que vivem os povos submetidos ao islamismo. Essa é, no fim de contas, a razão deste tipo de comportamentos: o subdesenvolvimento de povos inteiros, submetidos a um poder totalitário, que não separa a religião do homem, nem permite que o façam. A liberdade individual e cívica, tal e qual a concebemos, não tem aqui qualquer significado, nem é sequer um conceito inteligível.
7 comentários:
Caro Rui de Albuquerque,
Tomei a liberdade de tecer a crítica à interessante prosa pelas minhas paragens.
Cumprimentos,
JLP
Caro Rui,
O seu texto começa com um erro. Que me lembre de repente, só alguém como o Daniel Oliveira (o objectivo aqui é mesmo estereotipar) é que tem simultaneamente posições como "enaltecer" a Palestina, condenar as intervenções no Afeganistão E(saliento o E) no Iraque, tolerar violência anti-americana, etc. Mas, ao contrário do que o Rui afirma, quem assim pensa também tolera os ataques às embaixadas europeias.
Parece-me que você aglutina um pretenso Ocidente portador de determinadas opiniões relativistas e inconsistentes, dando-lhe uma importância que ele não tem. Pelo menos fora da "loony left".
A intervenção no Afeganistão foi quase universalmente aceite na Europa (que conta). A do Iraque não, mas isso são outros quinhentos (interesses Franco-Alemães, entre outras coisas).
Se o seu objectivo era apenas chamar a atenção para a inconsistência das ideias defendidas no ocidente, não precisava traçar o paralelo que traçou. Onde existirem individuos com liberadade para pensar, é natural que surjam sempre ideias contraditórias.
Rui,
Eu repudio a intolerância islâmica; e não enalteço os palestinianos.
Estou a ver que toda a gente entendeu onde querias chegar.
Excelente.
E é exactamente o que escreves que está na génese deste imbróglio.
Um abraço,
RS
Para copiar e difundir. :)
Excelente artigo.
Rui Carmo
Caro Rui
Em primeiro lugar alguém utiliza a mesma alcunha(!) que eu... e a minha já vem dos meus tempos idos de escolaridade secundária.
Portanto, o primeiro "migas" não sou eu.
Segundo, em relação ao seu execelnte post.
Nesta questão das liberdades, como em qualquer outra questão, existe para mim um conceito que parece deveras esquecido: as liberdades (sejam quais forem) terminam quando começam as liberdades dos outros. Ou ainda, as liberdades devem coexistir com as outras liberdades.
Quando a liberdade de expressão colide com o princípio do respeito ou da ofensa, não parece que tenha a legitimidade de ser expressa.
E como o caro Rui refere, não é só a questão do respeito pela liberdade religiosa e a ofensa (grave) ao islamismo.
Para mim está subjacente que os cartoons não foram meros exercícios de criatividade lúdica e satírica. mas sim anti-semíticas e racistas.
A ofensa não foi dirigida apena sao extremismo e radicalismo muçulmano. Mas a todos os que acreditam que o Islão e o Alcorão são de paz e pacíficos.
A todos os que estão cansados de serem constantemente apelidados de terroristas, sem que nada tenham contribuído para tal (antes pelo contrário).
N´s, continuamos com aquele sentimento de suprioridade civilizacional que, às veezs, lá produz conflitualidades do género, para as quais depois não temos solução.
Cumprimentos
Parece-me que o artigo perdeu o essencial que é a instrumentalização do fenômeno religioso para legitimar ações políticas. Sendo assim, o problema não é o islamismo em si mas as instituições que, dizendo-se inspiradas pela palavra divina, sustentam a dominação de determinados grupos sobre os demais.
Rach
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