21 fevereiro 2006

dois pesos, duas medidas

Como explicou Karl Popper, o «status» de um postulado, de uma asserção ou de uma hipótese científica, reside na sua resistência às sucessivas tentativas de refutação ou de falseabilidade a que seja submetida. A veracidade dos seus conteúdos será, assim, tanto mais firme quanto subsista ao maior número possível de provas de falseabilidade.
Este critério ou método científico tem, como Popper também demonstrou, uma consequência evidente: a Ciência nunca se esgota, nem se encerra em si mesma e nas suas leis, devendo ser um universo infinito e permanentemente aberto a novas provas e a novos testes que a ponham em causa. Nietzsche dizia, a outro propósito, que «o que não me mata fortalece-me». É exactamente isto que aqui se passa.
Diga-se, por último, que é graças a este espírito que a Ciência tem progredido e que, pelo contrário, sempre que ela se considerou suficiente, estagna.
Este método de trabalho aplica-se, naturalmente, a todos os ramos científicos. Como o João Mirandaaqui demonstrou à exaustão, também a História não pode excluir-se desta metodologia, mesmo nos casos em que nos pareçam mais inconcebíveis as hipóteses levantadas. Se alguém, por absurdo, nega a evidência, há que responder-lhe com as provas dessa evidência. No caso do Holocausto, elas abundam e são quase inesgotáveis: fotografias, documentos autênticos, relatos de testemunhas, entre muitas outras, são mais do que suficientes para refutar qualquer teoria que diga o contrário.
Na prisão de David Irving subsiste, porém, para além do direito inegável à refutação de um postulado científico da nossa História Contemporânea, uma óbvia questão de liberdade de expressão. Por mais abomináveis que sejam as opiniões de um indivíduo, numa sociedade livre ele terá sempre direito a tê-las, a defendê-las, a divulgá-las e a manifestá-las. Desde que, obviamente, não colida com outros direitos individuais, o exercício deste direito terá de ser legalmente protegido. Em caso de conflito, como em tantas outras circunstâncias da vida social, os tribunais são o sítio certo para as devidas reparações e compensações.
Como é evidente, numa sociedade livre os defensores de Hitler, de Estaline ou de Mao não poderão ser limitados no seu direito de defenderem as personagens que, vá-se lá saber por que estranha razão, veneram. Embora e curiosamente, as democracias ocidentais se tenham habituado a conviver tranquilamente com os defensores das ditaduras comunistas (no que fazem muito bem) e a perseguir aqueles que admiram o III Reich (no que fazem muito mal).
Dois pesos e duas medidas que, sem dúvida, não beneficiam a liberdade, nem engrandecem a tão reclamada tolerância das democracias ocidentais.

8 comentários:

Luís Marvão disse...

Não faz sentido, a propósito do caso Irving, vir com a estéril equiparação entre nazismo, estalinismo e maoismo.
Não existem, hoje, historiadores ou correntes académicas que neguem a existência do Gulag, ao contrário do que sucede com os revisionistas do Holocausto, que proliferam pelo menos desde a década de oitenta do século passado.

rui disse...

Não conheço bem o caso do David Irving, apenas sei que se trata de um historiador "revisionista".
Na minha opinião deve ser permitida toda e qualquer liberdade de expressão, incluindo a dos nazis.
Nisso, parece-me que divirjo de grande parte da esquerda.
Pareceu-me um erro politico crasso a esquerda aparecer a defender uma "responsabilidade" decrépita, apanágio de regimes autoritários a propósito da história dos cartoons.
Por razões de princípio e por razões "tácticas": entregou-se o ouro ao bandido, a direita radical apareceu injustificadamente como o "baluarte da liberdade" e os resultados estão à vista na subida do P. Nacionalista dinamarquês nas sondagens. Ou seja, ganharam os radicais dos dois lados.
A controvérsia David Irving julgo que tem a ver com uma questão "prática", das tais regras não escritas, aparentemente "irracionais", que constituem "contradições" relativamente aos valores da ética e da justiça de que se reclama a nossa civilização.
Uma questão "cultural" que quem está habitualmente mais habilitado a defender e a justificar são os conservadores.
Com efeito, as limitações à "liberdade de expressão" de teor nazi tiveram origem no resultado da segunda grande guerra.
Os nazis foram (tiveram de ser) esmagados pela força das armas com o concurso dos comunistas ao lado do "ocidente", enquanto que ( basófia reaganista à parte) os regimes comunistas se desmoronaram por si, em transições mais ou menos bruscas mas onde nunca existiram verdadeiras soluções de continuidade. Mesmo ao nível pessoal, o caso de Durão Barroso que saiu um belo dia de Lisboa, militante do MRPP, para ir passar férias em Londres e regressou passados quinze dias com outra perspectiva radicalmente diferente, não é comum.
Por mais que alguns queiram aplicar uma regra imutável ao tratamento a dar a uns e a outros, não é possível tratar as coisas da mesma maneira. Exaspera alguns conservadores mais "puristas" ( porque lhes convém neste caso, quando se trata do negacionismo que fazem dos resultados trágicos da guerra preentiva no Iraque, por exemplo, já defendem precisamente o contrario - por isso se costuma falar dos dois pesos e duas medidas com intenção bastante diferente daquela aqui empregue), mas é um facto que passou para o nosso subconsciente civilizacional.

rui disse...

oops... só agora reparei que me estendi no comentário. desculpa o mau jeito.

rui a. disse...

Hoje, talvez não. Mas, ainda há bem pouco tempo, sim. O «Sol da Terra» que era a extinta URSS fez delirar muito «boa» gente. A China de Mao deslumbrava os «intelectuais». E, ainda nos nossos dias, a Cuba de Fidel provoca afirmações como a de que «se o povo cubano escolheu o seu próprio processo democrático, quem sou eu para dizer que a minha democracia é melhor do que a deles».
Ou seja, se falarmos apenas e só de historiadores, se calhar tem razão. Se alargarmos a malha a políticos, escritores ou filófosos, já não será exactamente assim...
Por outro lado, ainda não passou tempo suficiente sobre a derrocada do comunismo, como passou já sobre a do nazismo, para os «historiadores» revisionistas entrarem em cena. Aguardenos mais alguns anos e veremos...

André Azevedo Alves disse...

Mais uma magnífico post do Rui.

A referência à "basófia reaganista" vai valer no entanto uma anotação no livrinho azul da CIA, onde são registados todos os desvios à linha justa. ;-)

rui disse...

o andré equivocou-se involuntariamente sobre o autor do comentário ao reagan e é bom que se esclareça o engano.
passarei a identificar-me de outra forma quando comentar neste blog para não embaraçar o seu autor.
quanto ao assunto:
por um lado, um artigo recentemente publicado na FAffairs sobre um estudo que procurou analisar a percepção da sociedade russa sobre a época do estaline (lembro que krutschev, embora "em privado" denunciou os crimes do Estaline cerca de 1953, ou seja apenas oito anos depois do final da segunda guerra) é preocupante. Estaline é visto como um político quase "normal" em que uma percentagem significativa de pessoas de todas as idades e condições votaria para Presidente.
A forma como se deu a "transição" para a democracia (chamemos assim ao actual regime russo...) também ajuda. É que na Alemanha esmagada, o nazismo deu lugar a um Plano MArshall e a um relançar de uma pujante economia de mercado mas com todas as vantagens do "estado social", e na Rússia a decadência soviética deu lugar a uma cleptocracia selvagem que fez meia duzia de oligarcas e deixou o resto da população entregue às leis do mercado e... da selva.
Mas concordo que talvez seja necessário um maior esforço de desmitificação.
Um outro problema surge com obras como a biografia do Mao recentemente publicada entre nós. é um "revisionismo negativo" tão caricatural que não dá credibilidade nenhuma a uma desmontagem séria do personagem.
Antes pelo contrário.
Não é de admirar pois, que possas vir a ter razão e assistamos dentro de alguns anos a um reacender de interesse pelo maoismo.
rui.david@gmail.com

rui a. disse...

Obrigado, caro Rui David, pelo oportuno reparo. Logo eu que sempre fui um reaganista inveterado!...

André Azevedo Alves disse...

Peço desculpa pelo meu erro, provocado pela inflação de Ruis nestes comentários. :-)

Sendo assim, fica o Rui A. com ficha limpa no livrinho azul. ;-)