Por dever de ofício de uma amorosa paternidade tardia, dei ontem comigo, sábado à tarde, à porta do «Portugal dos Pequenitos», acompanhando a família, na cidade de Coimbra.
Eu tinha uma muito vaga ideia daquilo, reportada a uma longínqua visita que, em idênticas circunstâncias, fizera na companhia de meus pais, antes ainda do 25 de Abril.
Por alguma estranha razão, a ocasião não ficara gravada nas minhas memórias de infância. Umas vagas recordações de umas casitas em miniatura por onde a pequenada circulava, uma ideia de algum peso e solenidade – coisa bizarra num parque infantil -, mas, sobretudo, pretos, muitos pretos, ou melhor, muitas estátuas dos nativos das antigas colónias e alguma reprodução dos seus «habitats», foi o que mais se me reteve no espírito, ao longo destes trinta anos e muitos últimos anos.
O Parque foi concebido por Bissaya Barreto e projectado e executado por Cassiano Branco. Começou a ser construído em 1938, tendo aberto ao público em 1950, e está, ao que parece, fundamentalmente na mesma. Dividido em três corpos temáticos sucessivos que, uma vez ultrapassada uma porta castelar com dois pajens tocando corneta (o que custa a quase simbólica quantia de € 6,00 por adulto, paga em cash, na ausência de máquinas automáticas, a uma senhora claramente indisposta), se expõem do seguinte modo: um primeiro dedicado ao «Portugal Ultramarino» (onde estão as ditas estatuetas que me ficaram na memória), um segundo reservado ao «Portugal Monumental»; com algumas reproduções em miniatura de palácios e monumentos do continente; e, por fim, o «Portugal Metropolitano» doméstico, provinciano, ecom as várias habitações-tipo que, à época, caracterizavam Portugal. Em complemento a este último troço, um pequeno zoológico, simbolicamente composto pelos animaizinhos emblemáticos da portugalidade: uma ovelha, uma cabra, um porco (por sinal muito mal tratados) e um pombo. Os três primeiros, presos por correntes. O último, ao que se julga ainda com asas e difícil de amarrar, não se encontrava representado, senão pelo local que tinha o seu nome à porta.
Esta fabulosa síntese de um país que se queria um império constitui o melhor retrato histórico do Portugal de há cinquenta anos atrás e do que o país foi durante o século passado. Não por acaso, na terceira parte do Parque, naquela que reproduz o país continental, encontram-se, em cada uma das casas por onde corre a canalhada a abrir e a fechar portas e janelas, gravadas em azulejos da época algumas das mais atrozes máximas, sentenças e provérbios que a literatura e a imaginação nacional alguma vez produziram. Parecem ter sido seleccionadas criteriosamente, mesmo em autores onde as não julgaríamos possíveis. Continuam a ser lidas por pais e filhos, provavelmente com a mesma atenção de quando ali foram colocadas.
Alguns exemplos? Aqui vão: «O caminho da taberna é o caminho do Hospital», «O trabalho é o pae da felicidade. Deus dá sempre a quem trabalha» e «Não morre de fome quem é trabalhador», da vox populi; de Júlio Diniz, estas belas quadras: «Ó mãe, dá-me uma espada,/ Ouço da pátria a voz»/ «Ei-la! É imaculada/ Era a de teus avós»/ «-Pura a trarei, voltando/ Se não morrer alli»/ «Vae, disse a mãe, chorando,/ Eu rezarei por ti.»; de D. Francisco Manuel de Melo, esta apropriada sentença: «Do homem, a praça; da mulher, a casa»; de Camilo, a pérola seguinte: «Não há crianças mais crianças, do que as mães»; e, last but not least, na reprodução da «casa típica» de Évora, esta avisada sentença, a única, aliás, com o nome do autor devidamente apagado: «A vontade de obedecer, única escola para aprender a mandar». O nome do autor, repita-se, o único apagado é, obviamente, o de António de Oliveira Salazar, cujo espírito percorre, de resto, todo o Parque, desde a entrada à saída.
Espantosamente, o «Portugal dos Pequenitos» resistiu ao 25 de Abril. Com poucas alterações, tudo está como dantes: mais umas linhas nas lajes descritivas das casas das antigas colónias, explicando que estas, entretanto, se tornaram em países viçosos e independentes; uma placa comemorativa da visita do Presidente Chissano, em 1999, como que legitimando o valioso património que ali se encontra, e a rasura do nome do antigo Presidente de Conselho de Ministros. Entretanto, passaram-se mais de cinquenta anos sobre a inauguração do Parque. Salazar morreu, o «Estado Novo» caiu, deu-se uma revolução, Portugal aderiu às Comunidades, transformou-se, modernizou-se, evoluiu, ou seja, mudou profundamente.
Mudou mesmo?
09 janeiro 2006
portugal dos pequenitos
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4 comentários:
bom post rui! aquilo é um dos melhores documentos dessa época.
É do tempo em que ainda existia Portugal.Salazar sempre!
Convenhamos que este texto é a prova provada de que o Portugal dos Pequeninos devia ser demolido.
que grande imbecilidade que disse esse pedro sá. Menos testemunho histórico há-de representar o próprio e lá por isso não o vamos "demolir", né?
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