10 janeiro 2006

estado


Caro Henrique,

O liberalismo, ao contrário do que diz, não nega, nunca negou, a existência do Estado. Menos ainda cai na ingenuidade de supor que ele esteja diminuído nos seus meios de intervenção e nos seus poderes de soberania. Pelo contrário, ele encontra-se mais forte do que nunca e mais intervencionista do que esteve alguma vez. Com a circunstância agravante de, ao fim de séculos de poder despótico e ilegítimo, se apresentar agora sob as vestes legitimadoras do sufrágio universal. Não existe, por conseguinte, qualquer utopia liberal neste domínio: não dizemos que o Estado acabou, mas que é necessário acabar com este Estado, se queremos preservar as nossas liberdades. Não afirmamos que a História acabou, nem achamos que o destino radioso da humanidade seja o capitalismo milenar. Sabemos bem (não se esqueça que Popper também nasceu na Áustria…) que o historicismo vale tanto quanto a astrologia. Peço-lhe, por conseguinte, que assentemos definitivamente neste ponto: conheço há anos suficientes a política, a história e os autores que descrevem uma e outra com realismo e seriedade, para não cair em falácias ou ficções.

Assim sendo, dir-lhe-ei que, para os liberais, o Estado não é forçosamente um mal em si mesmo. Mais: para qualquer liberal sensato (quem não for sensato não será, seguramente, liberal), o Estado é uma criação humana que respondeu a necessidades sentidas. Em «economês», tratou-se de um produto concebido para a satisfação de necessidades de mercado. Qualquer contratualista lhe diz isto, sem mais, nem menos. O ponto é, porém outro e muito diferente, e tem a ver com as razões, ou os fundamentos, que originaram esse particular modelo de organização política e comunitária. Para os liberais, elas residem na defesa dos direitos individuais. Da liberdade e da propriedade, esta entendida como condição sine qua non a primeira inexiste. Ora, porque o Estado contemporâneo se tem vindo a apropriar de funções de que não foi incumbido e que devem permanecer na esfera da subjectividade individual e da liberdade contratual dos cidadãos, a necessidade de o refrear, de o remeter à razão da sua existência originária, deve ser a prioridade de qualquer programa liberal. Porque, caro Henrique, ao invés do que V. afirma não existem «Estados “liberais”», ainda e mesmo que a adjectivação seja colocada entre comas. Para um defensor do realismo político como V. visivelmente é, esta perspectiva parece-me eivada de uma certa ingenuidade. Porque são os indivíduos e as comunidades sobre quem o Estado exerce o seu poder que têm de o suster. Não esqueça que, como lembrava Jouvenel, «l’Histoire est lutte de pouvoirs». Actualmente, esse conflito trava-se essencialmente entre o poder público e o poder privado dos cidadãos. É, sem dúvida, uma luta desigual, na qual a atitude liberal deverá ser a da intransigente defesa dos últimos, perante a prepotência do estatismo. Não fique à espera do advento de um Estado «amigo do cidadão», disposto a restituir-lhe os poderes que lhe furtou, sem uma sociedade civil que o obriga a fazê-lo. Essa, sim, seria uma perigosa utopia.

Como vê, caro Henrique, para os liberais o Estado não só é importante, como constitui o núcleo fundamental das suas preocupações. Quase diria que se o Estado não existisse, num mundo de ficção e de utopia, o liberalismo, ou a defesa da liberdade contra a coerção pública, seria muito provavelmente despiciendo. No entanto, esta óbvia constatação não deve fazer-nos inverter a perspectiva dos problemas, considerando que a sua solução reside na fonte. Por outras palavras, não devemos aceitar o Estado tal como ele hoje se nos apresenta, apenas por ele ser um dado de facto, objectivo e inegável. Combatê-lo, procurar diminui-lo, retirar-lhe o que não é seu e nunca lhe deveria ter sido cedido em momentos que são historicamente determináveis, é a vocação da cultura liberal. Nessa medida, a função do liberalismo é essencialmente pedagógica e ética, antes de ser política, a não ser que, como os marxistas, entendamos que não existe vida para além dela. Trata-se, deste modo, de tentar demonstrar que a esmagadora maioria das funções que o Estado Social desempenha podem, e devem, ser deixadas, com vantagem para todos, à liberdade individual e à respectiva liberdade contratual. De provar que o Estado cobra serviços de qualidade baixa a preços elevados, porque é um intermediário com interesses próprios que não são os dos cidadãos que diz representar. E que o faz de forma despótica, totalitária, sem sequer permitir, na maior parte dos casos, que as pessoas possam escolher em igualdade de circunstâncias entre o que oferece e o que poderia ser oferecido pela iniciativa privada. Fá-lo, sempre, afirmando o «interesse público» como prevalecente sobre os interesses privados, fazendo equivaler estes últimos aos egoísmos e a caprichos singulares, e os primeiros ao altruísmo das grandes causas. Estamos, então, perante a completa inversão da origem e dos fundamentos da comunidade política: os cidadãos servirem-na, ao invés de ela servir os cidadãos.

Acrescentarei apenas mais algumas linhas, para lhe dizer que o plano em que V. colocou o Estado na comunidade internacional me parece um pouco desfasado da realidade. O seu pressuposto é o do realismo estatista de Morgenthau, para quem os únicos agentes da comunidade internacional são os Estados, sendo a sua exclusiva preocupação o poder nacional, traduzido em ganhos e perdas objectivas. Acha, segundo me pareceu, que a globalização é resultado da acção consciente dos Estados, ou dos seus governantes, que nela mantêm interesses de puros ganhos de poder nacional. Não está longe, desculpe-me que lhe diga, da tese leninista da conspiração do capitalismo imperialista, ainda que a veja com agrado. A própria teoria de que a integração comunitária europeia, a que V. alude, e que é sem dúvida a origem da globalização dos dias de hoje, mais não terá sido do que uma maneira dos Estados da Europa Ocidental se precaverem contra o poder dos dois blocos da Guerra-Fria, no fundo, uma maneira original de não perderem e de adquirirem poder nacional, foi defendida por Morgenthau no seu Politics Among Nations. Está, hoje em dia, claramente ultrapassada. Até mesmo os neorealistas seus herdeiros, entre os quais Stanley Hoffmann, Robert Keohane e Andrew Moravcsik, sustentam que esse caso de integração regional começa a ultrapassar o conceito limitativo do Estado-Nação soberano e a constituir-se como uma realidade própria, ainda que com contornos que se encontram em definição. No mundo em que vivemos, a soberania individual não prevalece ainda sobre os poderes públicos estaduais. É um facto. Porém, ela começa já a dispor de outras instâncias a quem recorrer, para além das que pertencem ao Estado-Nação. Atenda, por exemplo, ao papel desempenhado pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e verá que, aí, já nem sempre é a «razão de Estado» que subsiste. Por outras palavras, se já não estamos na bipolaridade da Guerra-Fria, o mundo também não regressou ao tempo de Congresso de Viena.

Qual será, então, a atitude liberal perante a complexidade crescente do mundo em que vivemos? A mesma de sempre: colocar-se ao lado da defesa dos indivíduos e dos seus direitos, contra todas as formas de poder público que, de uma ou de outra maneira, reduzam a esfera da liberdade individual. Não há outra posição possível e, neste contexto, o modelo de Estado que marcou a nossa época, dotado de um imperium nunca antes imaginado, é inequivocamente o inimigo principal de qualquer sociedade que aspire à liberdade. Todos os meios que contribuam para a diminuição da sua soberania são, assim, muito bem vindos.

Cumprimento-o com estima e consideração,

2 comentários:

Anónimo disse...

gostaria de lhe solicitar, se me permite, que me explica-se então como sustentaria economicamente a sua versão de Estado, dado que reconhece a sua necessidade.

despeço-me com consideração

Anónimo disse...

Grande texto, caro Rui.

Um abraço,
RAF