José Xavier Mouzinho da Silveira conseguiu, em 3 de Dezembro de 1832, que D. Pedro IV aceitasse o pedido de demissão que lhe endereçara, no mês de Agosto desse mesmo ano, do cargo de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e interino dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, para que fora nomeado apenas nove meses antes, em 2 de Março.
No dia em que aceitara essas funções, D. Pedro era um rei sem reino. O «governo» em que Mouzinho tomara posse não existia para além da quimérica expedição de cerca de 7.500 homens, que preparavam nos Açores o assalto ao Portugal continental e às poderosas forças miguelistas. Quando se demitiu, o «governo» a que pertencia estava cercado no Porto pelo inimigo, sem recursos, sem força, sem dinheiro, sem povo que lhe obedecesse e sem um exército que impusesse a soberania a que julgava ter direito sobre o território português e as suas gentes. Na origem da sua demissão tinham estado dois factos determinantes: a sua discordância em relação aos empréstimos que Palmela negociara e contraíra em Inglaterra para suportar o esforço de guerra e que Mouzinho achava que iriam endividar irremediavelmente o tesouro público nacional, e a decisão de confiscar 5.000 pipas de vinho do Porto aos seus legítimos proprietários, como forma de garantir o pagamento de parte dos avultados empréstimos.
Mouzinho demitiu-se e em sua substituição foi nomeado um ministério onde pontificavam Silva Carvalho, Agostinho José Freire e Joaquim António de Aguiar. Na pitoresca descrição de Victor de Sá («A Crise do Liberalismo») este novo governo, «não sentindo os mesmos escrúpulos perante o princípio da inviolabilidade da propriedade privada», prosseguiu as necessárias «reformas económicas do liberalismo» ideologicamente moderado. Para isso, continuando a citação, «os novos legisladores iniciaram um vasto processo de transferência de títulos de propriedade graças aos decretos que prescreveram as indemnizações, a venda dos bens nacionais, a suspensão da Casa do Infantado e das ordens religiosas». As pipas de vinho foram, obviamente, confiscadas aos seus donos, sem apelo nem agravo, para regalo dos ingleses que sempre foram bons apreciadores desse excelente produto.
As pipas que sobraram - e foram muitas - a esse primeiro devaste das autoridades públicas, acabaram por ser em grande parte destruídas pelas forças miguelistas no ano de 1833, que, já enfraquecidas e receando nova «operação de crédito», pura e simplesmente lhes pegaram fogo. Segundo Oliveira Martins («Portugal Contemporâneo», vol. I), arderam entre 10.000 e 15.000 pipas de vinho do Porto, e 500 de aguardente, num espectáculo dantesco que durou dias e assombrou as cidades de Gaia e do Porto, invadiu o Douro e destruiu um imenso valor que, dias antes, tinha dono. Nesta altura, Mouzinho recolhera novamente ao exílio voluntário em Paris. Estava farto da maledicência que existia a seu respeito dentro das forças liberais. Como refere Oliveira Martins, Mouzinho era visto pelos «seus» como «um doido, um singular, um original! Nem sabia a essência das coisas, nem o modo de as levar por diante. A sabedoria enlouquecera-o – era “um homem de ideias”!». Para além do mais, tinha um estranho apego a essa bizarrice da «propriedade privada», em relação à qual não admitia quaisquer transigências: nem que se mexesse nas pipas, nem na propriedade dos partidários de D. Miguel, nem em coisa nenhuma que tivesse dono legítimo. O homem, de facto, não se enxergava!
O fim da guerra civil, em 1834, ditou, como é sabido, a vitória das forças de D. Pedro sobre as do seu irmão, o «usurpador». Morto, porém, o príncipe, o regime que se seguiu foi, durante muito tempo, caracterizado pelo «devorismo» com que imediatamente se lançou sobre o erário público e pela total falta de respeito pela propriedade privada, sobretudo da que pertencia aos derrotados. Mouzinho regressou ao país nesse ano de fim de guerra, e ainda exerceu alguns cargos públicos, mas sempre sem o empenho do passado. Dos tempos em que, de facto, se convencera da utilidade da sua acção governativa, deixara cerca de quarenta e quatro Decretos legislativos, que estruturavam em moldes revolucionários a administração pública, a justiça e as finanças. Hoje são comummente reconhecidos (com excepção do Dr. Victor de Sá…) como os diplomas legais que marcaram o Portugal Novo da segunda metade do século XIX e que lhe deram alguma modernidade e permitiram um relativo desenvolvimento económico e social.
Mais de cem anos após a morte de Mouzinho, mais concisamente em 1979, noutras paragens e com outros propósitos, tomava posse do lugar de chefe do governo do Reino Unido Margareth Thatcher, a Dama de Ferro. Os seus mandatos deixaram marca no seu país, ao ponto de ter sido seguida em muitos aspectos por um primeiro-ministro de um partido socialista que, por sua vez, se mantém há muito tempo no poder. Numa entrevista que concedeu, na altura, a um órgão de comunicação social, a Srª Thatcher confidenciou que fora a leitura de um livro, muitos anos atrás, que a fizera enveredar pela carreira política. Chamava-se «The Road to Serfdom» e fora escrito por um economista austríaco chamado Friedrich August von Hayek, ao tempo vagamente tido por louco e que era ostracizado em quase todas as academias do mundo, dada a «intransigência» das ideias que defendia. Thatcher leu o livro e não achou assim.
Tudo isto vem, obviamente, a propósito da discussão que, uma vez mais, vai por essa blogosfera fora sobre o liberalismo, desta vez enriquecida pela prosa excelente de Constança Cunha e Sá. Com alguma imaginação, regressando a Mouzinho e aos do seu tempo, utilizando as categorias que decorrem do que tem sido escrito, eu qualificaria Mouzinho como um «mestre do liberalismo» sem a noção das realidades práticas da vida; os liberais que lhe sucederam como exemplos excelentes de «liberais moderados», capazes de absorver o «melhor» do intervencionismo defensor do interesse público; enquanto que os miguelistas incendiários, bom, esses seriam verdadeiros mestres da realpolitik, conservadores avisados e cheios de realismo politico.
Obviamente que, falando agora seriamente, o que gostaria de concluir é que, por vezes, a força das ideias tem alguma utilidade. Mesmo aquelas que nos parecem mais intransigentes e menos aplicáveis, mais irrealistas e menos compatíveis com a vida prática dos nossos dias, enfim, as tais que são «quimicamente puras» e que dificilmente transigem nos seus princípios fundamentais. Obviamente que isso não as torna propriedade de ninguém. Pelo contrário: quem delas se queira servir, em modelo hard ou light, é sempre bem-vindo.
Que nos façam, essas ideias, a todos, muito bom proveito, sobretudo que nos sirvam para alguma coisa, nem que seja para mantermos estas animadas discussões em tom civilizado, são os meus votos sinceros e abnegados.
No dia em que aceitara essas funções, D. Pedro era um rei sem reino. O «governo» em que Mouzinho tomara posse não existia para além da quimérica expedição de cerca de 7.500 homens, que preparavam nos Açores o assalto ao Portugal continental e às poderosas forças miguelistas. Quando se demitiu, o «governo» a que pertencia estava cercado no Porto pelo inimigo, sem recursos, sem força, sem dinheiro, sem povo que lhe obedecesse e sem um exército que impusesse a soberania a que julgava ter direito sobre o território português e as suas gentes. Na origem da sua demissão tinham estado dois factos determinantes: a sua discordância em relação aos empréstimos que Palmela negociara e contraíra em Inglaterra para suportar o esforço de guerra e que Mouzinho achava que iriam endividar irremediavelmente o tesouro público nacional, e a decisão de confiscar 5.000 pipas de vinho do Porto aos seus legítimos proprietários, como forma de garantir o pagamento de parte dos avultados empréstimos.
Mouzinho demitiu-se e em sua substituição foi nomeado um ministério onde pontificavam Silva Carvalho, Agostinho José Freire e Joaquim António de Aguiar. Na pitoresca descrição de Victor de Sá («A Crise do Liberalismo») este novo governo, «não sentindo os mesmos escrúpulos perante o princípio da inviolabilidade da propriedade privada», prosseguiu as necessárias «reformas económicas do liberalismo» ideologicamente moderado. Para isso, continuando a citação, «os novos legisladores iniciaram um vasto processo de transferência de títulos de propriedade graças aos decretos que prescreveram as indemnizações, a venda dos bens nacionais, a suspensão da Casa do Infantado e das ordens religiosas». As pipas de vinho foram, obviamente, confiscadas aos seus donos, sem apelo nem agravo, para regalo dos ingleses que sempre foram bons apreciadores desse excelente produto.
As pipas que sobraram - e foram muitas - a esse primeiro devaste das autoridades públicas, acabaram por ser em grande parte destruídas pelas forças miguelistas no ano de 1833, que, já enfraquecidas e receando nova «operação de crédito», pura e simplesmente lhes pegaram fogo. Segundo Oliveira Martins («Portugal Contemporâneo», vol. I), arderam entre 10.000 e 15.000 pipas de vinho do Porto, e 500 de aguardente, num espectáculo dantesco que durou dias e assombrou as cidades de Gaia e do Porto, invadiu o Douro e destruiu um imenso valor que, dias antes, tinha dono. Nesta altura, Mouzinho recolhera novamente ao exílio voluntário em Paris. Estava farto da maledicência que existia a seu respeito dentro das forças liberais. Como refere Oliveira Martins, Mouzinho era visto pelos «seus» como «um doido, um singular, um original! Nem sabia a essência das coisas, nem o modo de as levar por diante. A sabedoria enlouquecera-o – era “um homem de ideias”!». Para além do mais, tinha um estranho apego a essa bizarrice da «propriedade privada», em relação à qual não admitia quaisquer transigências: nem que se mexesse nas pipas, nem na propriedade dos partidários de D. Miguel, nem em coisa nenhuma que tivesse dono legítimo. O homem, de facto, não se enxergava!
O fim da guerra civil, em 1834, ditou, como é sabido, a vitória das forças de D. Pedro sobre as do seu irmão, o «usurpador». Morto, porém, o príncipe, o regime que se seguiu foi, durante muito tempo, caracterizado pelo «devorismo» com que imediatamente se lançou sobre o erário público e pela total falta de respeito pela propriedade privada, sobretudo da que pertencia aos derrotados. Mouzinho regressou ao país nesse ano de fim de guerra, e ainda exerceu alguns cargos públicos, mas sempre sem o empenho do passado. Dos tempos em que, de facto, se convencera da utilidade da sua acção governativa, deixara cerca de quarenta e quatro Decretos legislativos, que estruturavam em moldes revolucionários a administração pública, a justiça e as finanças. Hoje são comummente reconhecidos (com excepção do Dr. Victor de Sá…) como os diplomas legais que marcaram o Portugal Novo da segunda metade do século XIX e que lhe deram alguma modernidade e permitiram um relativo desenvolvimento económico e social.
Mais de cem anos após a morte de Mouzinho, mais concisamente em 1979, noutras paragens e com outros propósitos, tomava posse do lugar de chefe do governo do Reino Unido Margareth Thatcher, a Dama de Ferro. Os seus mandatos deixaram marca no seu país, ao ponto de ter sido seguida em muitos aspectos por um primeiro-ministro de um partido socialista que, por sua vez, se mantém há muito tempo no poder. Numa entrevista que concedeu, na altura, a um órgão de comunicação social, a Srª Thatcher confidenciou que fora a leitura de um livro, muitos anos atrás, que a fizera enveredar pela carreira política. Chamava-se «The Road to Serfdom» e fora escrito por um economista austríaco chamado Friedrich August von Hayek, ao tempo vagamente tido por louco e que era ostracizado em quase todas as academias do mundo, dada a «intransigência» das ideias que defendia. Thatcher leu o livro e não achou assim.
Tudo isto vem, obviamente, a propósito da discussão que, uma vez mais, vai por essa blogosfera fora sobre o liberalismo, desta vez enriquecida pela prosa excelente de Constança Cunha e Sá. Com alguma imaginação, regressando a Mouzinho e aos do seu tempo, utilizando as categorias que decorrem do que tem sido escrito, eu qualificaria Mouzinho como um «mestre do liberalismo» sem a noção das realidades práticas da vida; os liberais que lhe sucederam como exemplos excelentes de «liberais moderados», capazes de absorver o «melhor» do intervencionismo defensor do interesse público; enquanto que os miguelistas incendiários, bom, esses seriam verdadeiros mestres da realpolitik, conservadores avisados e cheios de realismo politico.
Obviamente que, falando agora seriamente, o que gostaria de concluir é que, por vezes, a força das ideias tem alguma utilidade. Mesmo aquelas que nos parecem mais intransigentes e menos aplicáveis, mais irrealistas e menos compatíveis com a vida prática dos nossos dias, enfim, as tais que são «quimicamente puras» e que dificilmente transigem nos seus princípios fundamentais. Obviamente que isso não as torna propriedade de ninguém. Pelo contrário: quem delas se queira servir, em modelo hard ou light, é sempre bem-vindo.
Que nos façam, essas ideias, a todos, muito bom proveito, sobretudo que nos sirvam para alguma coisa, nem que seja para mantermos estas animadas discussões em tom civilizado, são os meus votos sinceros e abnegados.
11 comentários:
Grande post, caro Rui. Bem me dizias que ia ser de arromba!
Um abraço,
Rodrigo Adão da Fonseca
Não há dúvida: o Rui é um Doutor do liberalismo...
Excelente!
Muito bom.
Imprimir, afixar, guardar e ler muitas vezes!
faço minhas as palavras dos meus antecessores. um texto excelente não é só um texto com o qual concordamos. é um texto que nos faz pensar.
Só posso repetir os elogios anteriores. Muito bom.
gostei muito do que li... rui, acho que mereces uma prenda! ;)
belíssima aula de história.
Impressionante!
Muito obrigado a todos. Especialmente à Alaíde, que não se esqueceu dos amigos...
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