26 janeiro 2006

historicismo, construtivismo e epistemologia liberal


1. Historicismo e Construtivismo
Em Maio de 1822, num pequeno livro chamado «Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para a Reorganização da Sociedade», Auguste Comte escrevia:
«Toda a ciência tem por fim a previdência. Porque a aplicação geral das leis estabelecidas segundo a observação dos fenómenos tem por fim prever a respectiva sucessão. Na realidade, todos os homens, por pouco instruídos que os julguemos, fazem verdadeiras previsões, fundadas sempre sobre o mesmo princípio, o conhecimento do futuro pelo passado.
(...) Está, portanto, evidentemente muito conforme com a natureza do espírito humano que a observação do passado possa facultar a predição do futuro, e que o possa fazer tanto em política como em astronomia, em física, em química e em fisiologia»
(August Comte, Reorganizar a Sociedade, Guimarães Editores, 4ª Ed., Lisboa, 2002, p. 146).
Esta forma de abordar os fenómenos sociais, fazendo deles uma autêntica «física social» cujo grau de previsão de resultados e de precisão dogmática seria supostamente total, entronca numa visão positivista da ciência, característica do século XIX, e que deixou resquícios na centúria seguinte. Verdadeiramente, não se trata nem de uma abordagem, nem de um método científicos, porque, mais não é do que uma convicção nas supostamente ilimitadas capacidades do espírito e da razão humanas na descoberta da verdade, que teve repercussões ideológicas inevitáveis.
Como Karl Popper assinalou na «Sociedade Aberta e os seus Inimigos», esta tradição intelectual é muito antiga: podemos, talvez, situar as suas origens no platonismo da «República dos Sábios», aqueles que, para Platão, seriam os mais habilitados numa sociedade a exercer o poder, porque melhor o podiam compreender e intuir; desenvolveu-se, mais tarde, no pensamento utópico ocidental, onde tem firmes tradições com autores como Campanella ou Thomas More.
Com o advento do racionalismo no século XVII, sob a influência preponderante de René Descartes e de Francis Bacon, esta corrente ganhou foros pretensamente científicos, e promoveu a razão a oráculo da política e da vida social. A doutrina da «vericitas naturae», ou «doutrina da verdade evidente», como Popper a designou, é um produto genuinamente cartesiano. O autor da Sociedade Aberta definiu-a como a «visão optimista de que a verdade é sempre reconhecível quando colocada diante de nós: se ela não se revelar por si só, precisará apenas de ser desvelada ou descoberta» (Karl R. Popper, Conjecturas e Refutações, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 35).
No Discurso do Método, escreveu Descartes: «Sempre me mantive firme na resolução que havia tomado de não supor um outro princípio além do que me tenho vindo a servir para demonstrar a existência de Deus e da alma, e de não tomar uma coisa por verdadeira, sem que me parecesse mais nítida e mais segura do que me tinha parecido, até essa altura, as demonstrações dos geómetras e, contudo, ouso afirmar que não somente encontrei os meios de me dar satisfação em pouco tempo, no que respeita a todos os principais problemas de que se ocupa a filosofia, mas também pude descobrir certas leis que Deus de tal modo estabeleceu na natureza, e das quais imprimiu noções nas almas que, tendo reflectido convenientemente sobre elas, não poderíamos duvidar que elas não sejam exactamente observadas em tudo o que existe ou que se realiza no mundo» (René Descartes, Discurso do Método, Guimarães Editores, 3ª edição, Lisboa, 1997, p. 43).

Da premissa da «vericitas naturae», que a passagem acima transcrita ilustra com clareza, se chegou com relativa facilidade ao historicismo como modelo a seguir nas ciências sociais. Ele consiste «no ponto de vista de que a evolução da humanidade segue um enredo e que se conseguirmos descobrir esse enredo teremos uma chave para o nosso futuro» (K. Popper, op. cit., p. 369). Parte importante da tradição política ocidental filia-se nesta visão das coisas, na ideia de que o futuro é previsível, assim como o será também o comportamento humano individual e agregado socialmente. Seja pela utilização dos mecanismos da razão por parte dos déspotas iluminados, seja pelo domínio das grandes correntes da História, como propôs Karl Marx, que «anteviu» o fim do capitalismo e o triunfo do socialismo. No século XIX, o positivismo de Comte e o socialismo científico de Marx foram teorias interpretativas da História que aplicaram os pretensos fundamentos científicos cartesianos nas suas análises e prospectivas.

No campo da política, o historicismo, pressupondo a superior capacidade da mente humana para perscrutar o futuro, concebe a possibilidade de o moldar à simples imposição da vontade humana. Levaria, por consequência, a algumas experiências de índole construtivista (o construtivismo político consiste na «innocent sounding formula that, since man has himself created the institutions of society and civilisation, he must also be able to alter them at will so as to satisfy his desires and wishes», F. A. Hayek, The Errors of Construtivism, in New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge, Londres, 1990, p. 3) e de cariz orientador, planificador e dirigista, tendo sempre sub iudice o objectivo de edificar sociedades ideais ou próximas de um máximo expoente de felicidade. Apesar das suas muitas variantes, o construtivismo assenta sempre no voluntarismo político e social, o mesmo é dizer que concebe a evolução da sociedade como um resultado do exercício da vontade humana.
Neste sentido, já Jean-Jacques Rousseau escrecia no século XVIII que «Aquele que ousa lançar-se na empresa de instituir um povo deve sentir-se em condições de poder mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada indivíduo, que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual esse indivíduo receba de certo modo a sua vida e o seu ser; de alterar a constituição do homem para a reforçar; de substituir por uma existência parcial e moral a existência física e independente que todos recebemos da natureza» (J.-J. Rousseau, O Contrato Social, Livros de Bolso Europa-América, Lisboa, 1972, p. 44).
Na economia política, também o keynesianismo, foi uma forma de construtivismo historicista, ao propor o controlo e a planificação progamática do funcionamento do mercado, bem como o planeamento económico a partir da determinação comportamental dos agentes económicos, tendo em vista o pleno emprego, a redistribuição equilibrada dos rendimentos e o crescimento económico e social. É, por isso, também, uma forma de construtivismo e de intervencionismo, na medida em que se baseia na convicção de que certos fenómenos sociais são previsíveis e, por consequência, humanamente controláveis.

O construtivismo político, filho dilecto do historicismo, advoga o intervencionismo social como forma de moldar o curso da história e a natureza da sociedade. Ele acredita seriamente que as sociedades humanas funcionam com base em leis inteligíveis pela razão, que se podem utilizar para adaptar o futuro às suas melhores conveniências. As doutrinas construtivistas querem transformar o homem e a sociedade por actos de vontade. Agregam, por isso, ideologias políticas tão diversas quanto a social-democracia e o socialismo democrático, o comunismo e o fascismo. Em todas elas se encontra o mesmo traço comum essencial: a intervenção do Estado, de uma entidade superior aos indivíduos e à própria sociedade, feita em nome dos valores sociais estruturantes, como a justiça social, a solidariedade, a igualdade de oportunidades. O primado do público sobre o privado, em suma; do colectivo sobre o individual. Elas supõem que quem governa dispõe de mecanismos de racionalidade e clarividência superiores aos dos indivíduos concretos, capazes de precaver e conceber os cenários possíveis do futuro, autorizando-se assim a impor a sua vontade à comunidade.

2. A Refutação do Historicismo e do Construtivismo pela Epistemologia Liberal

O «princípio da impotência», enunciado pelo físico e matemático inglês Sir Edmound Whittaker e invocado por Hayek e Popper nas suas apreciações epistemológicas, é o cerne da crítica liberal ao positivismo e cienticismo construtivista e historicista.
Segundo este prisma, o problema do intervencionismo é essencialmente de índole gnoseológica, na medida em que ele pressupõe a ausência de limites ao conhecimento humano, acompanhado pela evolução da ciência positiva que lhe facultaria os meios de ascese à verdade. A ingerência na sociedade por parte dos poderes públicos estaria assim fundamentada num conhecimento científico das «leis sociais»: as «leis da história» no marxismo, as «leis económicas» no intervencionismo e no keynesianismo, as «leis raciais» no nazismo, a «lei divina» nos regimes teocráticos.
Para Hayek, «nous n’agissons jamais, nous ne pourrions jamais agir, en pleine considération de tous les faits d’une situation donné» ( Friedrich A. von Hayek, Droit, Legislation et Liberté, vol. 1 – Règles et Ordre, 2ª Ed., Presses Universitaires de France, Paris, 1985, p. 35), pelo que o conhecimento humano, ao contrário do que pretendem os cartesianos, será naturalmente limitado, em parte devido à enorme complexidade dos objectos e dos fenómenos sociais sobre os quais ele incide, e, por outro lado, pela própria insuficiência do espírito humano, incapaz de abarcar e relacionar coerentemente toda a informação e demais dados inerentes à fenomenologia social. É, apesar de tudo, essa consciência dos limites do nosso conhecimento, que possibilita o progresso científico e social: «ce fut toujours la reconnaissance des limites du possible, qui a rendu l’ homme capable de faire pleinement usage de ses capacités», afirma Hayek (idem, p. 9); «o homem pode conhecer: logo pode ser livre» (Popper, Conjecturas… , p. 33), reforça Popper.
Segundo esta abordagem epistemológica, o caminho do conhecimento é feito de permanentes avanços e retrocessos, e encontra-se fundado na aprendizagem pelo erro (método hipotético-dedutivo), o que leva a que o seu progresso resulte «fundamentalmente, na modificação do conhecimento precedente» (Popper, idem, p. 56). Por isso, as teorias e as «leis» científicas deixaram, pelo menos desde Einstein, de ter um valor absoluto e inquestionável. A evolução científica resulta sempre da colocação de novas hipóteses em torno de problemas antigos. E as «leis» científicas não são axiomas descritivos de factos inquestionáveis, mas a constatação de certas impossibilidades e limites, ou seja, de que determinados factos não se podem, pelo menos naquele momento, produzir. Nessa medida, mais do que «leis», as conclusões da ciência são probabilidades (Acerca do conceito popperiano de propensão científica e a sua demarcação do de possibilidade, cfr. Karl R. Popper, Um Mundo de Propensões, Editorial Fragmentos, 1991): indicam hipóteses de trabalho com elevado grau de coerência explicativa dos fenómenos observados, mediante os dados disponíveis no momento em que são enunciadas, que devem permanentemente ser postas à prova por outros factos e teorias: «o critério que define o status científico de uma teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada», afirma Popper (idem, p. 66). E é nesta asserção que se encerra o essencial do seu pensamento sobre o conhecimento científico. De acordo com esta perspectiva, «o objectivo da ciência é encontrar explicações satisfatórias do que quer que se nos apresente e nos impressione como estando a precisar de explicação. Por explicação (ou por explicação causal) entenda-se um conjunto de proposições das quais uma descreve o estado de coisas a explicar, enquanto as outras, as proposições explicativas, constituem a “explicação” stricto senso (o explicans do explicandum)» (Karl R. Popper, O Realismo e o Objectivo da Ciência, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 152).
Neste novo paradigma científico, Popper lança um desafio e sugere uma conclusão: «Acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo que, ao fazê-lo, descobríssemos apenas que não sabemos muita coisa. (...) Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que respeita aos fragmentos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância» (Conjecturas…, p. 56).
A aquisição do conhecimento será, portanto, obtida por sucessão e verificação: baseia-se, em parte na tradição («A fonte mais importante do nosso conhecimento – além do conhecimento inato – é a tradição. A maior parte do que sabemos e aprendemos pelo exemplo, por ouvir contar, lendo livros, aprendendo a criticar, a receber e a aceitar a crítica, a respeitar a verdade», Popper, Conjecturas…, p. 56), na experiência e na verificação permanente das asserções que temos como mais prováveis para a melhor explicação dos fenómenos observados. Aprender com o erro permite evitar a sua repetição e confere maior segurança às nossas escolhas. Este conhecimento, adquirido pela experiência e pela verificação prática das variáveis hipotéticas, origina, uma vez apuradas, regras de conduta social, às quais Hayek designou por «regras de justa conduta». Essas regras produzem padrões comportamentais ajustáveis, inatos à vida em sociedade, que nos dão as respostas mais adequadas às nossas necessidades individuais e colectivas.
Em suma, a epistemologia liberal de Popper e de Hayek assenta numa perspectiva evolucionista do conhecimento, que se baseia na tradição e na aprendizagem através do erro, e que exclui dogmas científicos e determinismos sociológicos. Para ela, a ciência é um campo aberto a novas e a todas as hipóteses, só assim podendo avançar e progredir.
O construtuvismo está, portanto, nos antípodas da epistemologia liberal. Por isso e ao contrário desta última, aquela doutrina pretende obter resultados no campo das Ciências Sociais e Humanas, que considera conclusivos, certos e precisos, e a partir dos quais analisa social e comportamentalmente os indivíduos. Segundo o liberalismo de Hayek e Popper, o pensamento construtivista é a-científico, porque se coloca à margem da premissa mais importante da ciência: a sua confrontação e verificação permanente com outras hipóteses que a possam refutar e invalidar. Os dogmas políticos do construtivismo assentam, segundo esta perspectiva, em falsidades científicas. Não podem, por isso, obter bons resultados quando aplicados à prática.

7 comentários:

El Ranys disse...

Boa súmula, de que resulta um esclarecedor texto de teoria política, bastante útil para os menos familizarizados com as diversas correntes.
O Portugal Contemporâneo está, desde há muito, nos meus favoritos, e passará (quando houver tempo para mexer no "template") a link permanente no blog.

CN disse...

O evolucionsimo é certamente tipico de Hayek, mas é preciso notar que a Praxeologia e o seu apriorismo (Mises, Rothbard,Hoppe), defende que o conhecimento em ciências sociais é possivel (e só possível desta forma) a partir de deduções dado os factos e axiomas da realidade: a condição humana (o homem age com um propósito) e recursos escassos.

Sobre tudo isto existe um ficheiro em Audio de Hoppe sobre o metodo epistemológico "austriaco", com grandes referencias a que entende de falacias de Popper, etc.

Joao Galamba disse...

Rui,

Nao achas que entre racionalismo colectivista e atomismo individualista falta incluir um meio termo -democracia? Uma ordem completamente descentralizada acaba por privar os homens, enquanto cidadaos, da capacidade de deliberar politicamente sobre o contexto social no qual cada um enquanto individuo exerce as suas escolhas. Uma sociedade de mercado transforma o contexto da escolha individual num dado absoluto, extra-politico(ou pelo menos algo nao passivel de ser submetido a avaliacao politica). Parece-me que a unica forma de nao lamentar este facto requer uma narrativa historica de progresso, que no mundo em que vivemos me parece manifestamente imprudente. O evolucionismo Hayekiano e a crenca absoluta na bondade da autonomia do mercado so podem ser sustentadas recorrendo a algo que nao passa de fe'.

Um abraco,
Joao

rui a. disse...

Caro João,

Desculpa não te ter respondido antes, mas andei~entretido com o Mouzinho da Silveira. De todo o modo, a questão que levantas não dá para responder numa caixa de comentários. Vou revervá-la, com a tua licença, para um futuro «post».

Um abraço,

Joao Galamba disse...

Rui,

Ja agora acrescento mais um tema ao meu comentario: a suposta superioridade epistemica do mercado. Na minha opiniao isto pressupoe a dicomotia estado individuo. Mas se o poder politico for democratizado (descentralizacao e self-rule na tradicao do civic humanism) podemos dizer que ha duas formas de conceber os interesses individuais: dados/preferencias (o mercado e' superior) ou deliberacao com outros (nao faz sentido falar de interesses como um input ou algo dado)

Alias, dizer que o mercado satisfaz as preferencias individuais esquece-se que o mercado tambem as condiciona e transforma.

Acho que uma parte da critica liberal depende de uma concepcao de poder vertical esta algo desacreditada (por ser redutora). O contexto onde vivemos tambem e' um "locus of power": nem todo o poder e' exercido por um ou mais agentes.

Eu acho que a democracia e a tradicao de self rule pode ser epistemicamente superior ao mercado.

E tu?

um abraco,
j

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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