O sistema de governo português criado pela Assembleia Constituinte de 1975 fará, no próximo ano, trinta anos de vida. Ele foi um dos modelos indicados por Maurice Duverger no seu livro de 1976, Échec au Roi, para qualificar um novo tipo de sistema que, nessa altura, pautaria a organização dos poderes constitucionais na Áustria, Islândia, Irlanda, Finlândia e em Portugal e em França. O que o distinguiria dos modelos democráticos correntes, o presidencialismo de matriz norte-americana e o parlamentarismo originário na Inglaterra, seria o facto do governo não depender exclusivamente de nenhum dos dois pólos tradicionais da sua legitimidade, o presidente e o parlamento, mas do concurso simultâneo de ambos. Na raiz dos poderes políticos do Chefe de Estado, estava a sua legitimidade democrática expressa por sufrágio universal. Duverger distinguiu, contudo, nos seis exemplos dados, os países onde esses poderes eram mais fortes, daqueles onde se encontravam mais atenuados. No primeiro caso, em primeiro lugar estava a França, cuja Constituição se tivera de adaptar às pretensões do General de Gaulle. Logo, em segundo lugar, Duverger indicou Portugal.
Ao longo deste tempo, em que a Constituição portuguesa atenuou, ainda que não substancialmente, os poderes presidenciais, tivemos três presidentes e seis mandatos. Há, dessa experiência, algumas conclusões a retirar.
Deve-se, talvez, distinguir os mandatos do primeiro presidente, o General Ramalho Eanes, dos que foram exercidos pelos dois presidentes seguintes, Mário Soares e Jorge Sampaio. Os motivos a apontar podem ser vários, mas, sobretudo, existem dois determinantes: a revisão constitucional de 1982, que limitou alguns dos poderes de presidente, e o cariz pretoriano e pouco civilista do (pelo menos) primeiro mandato do General. Existem, contudo, traços comuns e permanentes a realçar.
Em regra, o primeiro mandato é mais cordato do que o segundo. A impressão que fica é que os titulares do cargo querem assegurar a reeleição, evitando conflitos com quem governa.
Mas, também parece ser prática assente que o segundo mandato altere substancialmente a atitude do presidente para com o governo, sobretudo quando não provém da área política onde se situa: Mário Soares foi, segundo o primeiro-ministro de então, uma «força de bloqueio» da governação e Jorge Sampaio dissolveu uma Assembleia da República com uma maioria absoluta que sustentava um governo que, por força disso mesmo, caiu também.
Por outro lado, o juízo que o eleitorado faz do presidente é quase consensual: se não faz mais é porque não pode ou porque o não deixam, remetendo-o, desse modo, para uma esfera metapolítica, etérea, onde só existe virtude e o vício e a ambição de poder não penetram. Logo, a apreciação crítica democrática do exercício dos seus mandatos é praticamente inexistente.
Diga-se, ainda, que todos os presidentes sentiram a necessidade ou o apelo de, a partir de Belém, interferirem na vida política e partidária: Eanes atacou o PS e o PSD, provocando cismas internos gravíssimos, e chegou mesmo a fazer o «seu» partido, o PRD; Soares não escapa à censura de ter originado a demissão de Vítor Constâncio e Jorge Sampaio da liderança do PS, como sempre desconfiou de Guterres. Mesmo Sampaio, aparentemente mais pacato, não deixou de fazer xeque-mate a Ferro Rodrigues, levando-o à demissão do cargo de secretário-geral.
Isto significa que, tal como está desenhado o sistema de governo português, o presidente pode efectivamente perverter as regras do jogo democrático, sem ser minimamente objecto de controlo político. De facto, ele não tem atribuições constitucionais que lhe permitam o exercício da política, embora não resista a jogá-la. Lamentavelmente, não existe, neste sistema, qualquer mecanismo de controlo político das funções do presidente, embora ele possa fazê-lo quer em relação ao governo, quer em relação à Assembleia da República.
O futuro do semipresidencialismo português estará, nos próximos dez anos, nas mãos de Aníbal Cavaco Silva. A grande incógnita da política que aí vem é como será que se vai comportar politicamente o presidente, quer em relação aos governos que tutelará, quer em relação aos principais partidos políticos do regime, desde logo, o PSD, onde exercerá sempre uma influência determinante, mesmo que o não queira, e ao CDS, a quem poderá condenar ao limbo político, se assim o desejar. A ver vamos. Mas, o mais provável será continuar tudo na mesma e mantermos um modelo de governo politicamente híbrido e sem que daí resulte qualquer vantagem para o país.
11 dezembro 2005
30 anos de semipresidencialismo
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3 comentários:
obrigado pela perspectivação do problema, que me ajuda a perdoar-te que dês já de barato a eleição do cavaco.
no entanto não fica bem demonstrada a tua crítica. o sistema será "hibrido" e "sem vantagens para o país", dizes.
mas propões alguma alternativa?
presidencialismo? ausência de presidente e todo o poder ao chefe do governo? e os "checks and balances?".
ps: politicamente muito longe, mas gosto de ler o teu blog.
Caro Rui,
Obrigado pela referência ao blog e pela crítica ao texto.
Eu não o desenvolvi muito para, por um lado o não tornar excessivamente longo e, por outro, porque escrevi muito sobre o tema no «Blasfémias» e acabaria por me repetir.
De todo o modo, acrescento apenas que o nosso semipresidencialismo foi historicamente desenhado a seguir ao 25 de Abril, para garantir o equilíbrio político entre o MFA e os partidos. Julgo que, 30 anos depois, fica provado que não nos serve. Quanto a soluções alternativas, julgo que a tradição democrática europeia é parlamentar, havendo no parlamentarismo algumas variantes que nos poderiam servir.
Quanto à eleição de Cavaco, garanto-lhe que não fiz qualquer juizo de valor. Julgo mesmo que é um dado adquirido. Se isso será bom ou mau, como em tudo na vida, mais tarde se verá...
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