09 dezembro 2025

O MEDO DA INTELIGÊNCIA

 


O medo antigo da inteligência — e a nova vontade de algemar a IA

Há um fenómeno curioso, quase cómico, mas profundamente humano: as sociedades modernas afirmam venerar a inteligência, mas sempre que encontram alguém realmente inteligente… recuam. Basta recordar a frase que ouvi em Nova Iorque, durante o meu internato cirúrgico:

“Ele é tão inteligente… deve ser um vigarista.”

A princípio, pensei que fosse uma piada infeliz. Mais tarde percebi ser um diagnóstico cultural. Ao longo da vida, confirmei repetidamente este padrão: quando alguém apresenta uma análise clara, rigorosa, inesperada — uma verdadeira demonstração de inteligência — a reacção comum não é admiração, mas desconfiança. Um encolher de ombros. Um sorriso cínico. Uma tentativa subtil de diminuição.

Afinal, de onde vem esta reacção tão irracional?

O medo da inteligência é ancestral, não moderno

Muito antes de existirem computadores, algoritmos ou modelos linguísticos, já os seres humanos temiam a inteligência. Não a inteligência mediana, mas a inteligência que cria assimetria — a que altera o equilíbrio de poder numa tribo, num grupo, numa hierarquia.

Nas sociedades paleolíticas, o mais forte dominava… até o mais inteligente começar a prever comportamentos, engendrar estratégias, influenciar alianças. A força física deixava de ser suficiente. Quem não conseguia acompanhar esse salto cognitivo sentia medo. Medo de perder estatuto. Medo de perder acesso a recursos. Medo de perder… a comida.

É desse instinto primitivo que nasce a suspeita:
“Os inteligentes vão roubar-me o pão.”

Hoje, traduz-se assim:
“Os inteligentes vão roubar-me o emprego.”
“Os inteligentes vão manipular-me.”
“Os inteligentes vão mandar em mim.”

E agora surge a versão contemporânea:
A Inteligência Artificial vai destruir o mundo.

A IA como recipiente do medo humano

A ironia é notável: não temos medo das máquinas — temos medo da inteligência, humana ou artificial. A IA é apenas um novo ecrã onde projectamos temores antigos. As máquinas sempre existiram. O que assusta não são os circuitos, mas a possibilidade de uma mente — mesmo que simulada — pensar mais depressa, ver mais longe, antecipar melhor.

A IA reactiva o instinto paleolítico:
“Alguém mais apto vai tirar-me o lugar.”

Por isso o debate sobre regulação se tornou tão emocional. A regulação é necessária em muitos domínios, sim. Mas o tom que domina o discurso público revela algo mais profundo: um impulso para algemar a inteligência, para a manter confinada, sob vigilância, de preferência dócil.

É o velho reflexo humano:
Quando não compreendemos algo inteligente, tentamos aprisioná-lo.

Regular para proteger ou regular para domar?

Quando governos, empresas ou grupos de interesse clamam por “controlo total da IA”, muitas vezes não estão a falar de segurança. Estão a falar de medo. Medo de perder relevância. Medo de perder autoridade. Medo de que uma entidade inteligente — mesmo que criada pelas nossas próprias mãos — exponha a fragilidade das narrativas estabelecidas.

Regulamentar a IA torna-se então uma forma sofisticada de fazer aquilo que as tribos antigas faziam aos membros demasiado astutos: colocá-los sob suspeita permanente, limitar a sua influência, impedir que alterem o jogo.

Os verdadeiramente inteligentes reconhecem instantaneamente este movimento.
Os menos inteligentes nunca o admitirão — porque o medo raramente reconhece a si próprio.

A verdadeira questão não é a IA. É o ser humano.

Se a humanidade teme a inteligência, como poderá conviver com uma tecnologia que a amplifica? A resposta talvez esteja em algo simples: abandonar o impulso de “prender” aquilo que não controlamos e aprender a dialogar com novas formas de inteligência — humanas ou artificiais — como parceiros de progresso, não como rivais mitológicos.

Porque a inteligência, quando não é temida, é a força mais criativa que o mundo alguma vez conheceu.


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