03 julho 2025

O LOGRO DO EMPREENDEDORISMO


Nos últimos anos, a retórica do empreendedorismo independente ganhou força, celebrando a liberdade de quem escolhe trabalhar por conta própria. No entanto, por trás dessa imagem de autonomia, esconde-se uma realidade bem menos glamorosa: a multiplicação de dependências externas está a sufocar a produtividade de profissionais liberais e pequenos empresários.

Seja um médico em prática liberal, um terapeuta alternativo, um advogado ou um designer freelance, todos enfrentam um mesmo obstáculo invisível: a fragmentação da cadeia produtiva de serviços. A cada etapa da sua atividade, é necessário recorrer a terceiros — assistentes, contabilistas, informáticos, fornecedores de software, plataformas de marcação ou faturação — que, longe de aumentar a eficiência, muitas vezes se tornam gargalos de produtividade.

“Tenho que ajustar a minha agenda à disponibilidade da assistente, esperar por respostas do suporte técnico do software médico e, ainda, lidar com mudanças constantes nas exigências legais”, relata um médico liberal de Nice. “Sinto que o meu trabalho é limitado pela capacidade — ou indisponibilidade — de outras pessoas, sobre as quais não tenho controlo.”

Um ecossistema de microdependências

Esta fragmentação não é meramente um efeito do mercado, mas frequentemente imposta por regulamentações estatais. Obrigações como certificados digitais, sistemas de interoperabilidade, normas de segurança sanitária e obrigações fiscais complexas tornam praticamente impossível ao profissional gerir tudo sozinho. Resultado: a autonomia, outrora distintiva do trabalho liberal, dilui-se numa teia de obrigações e intermediários.

Além disso, há o efeito da “plataformização”. Muitos profissionais dependem agora de plataformas privadas — como Doctolib para médicos, Médoucine para terapeutas ou Uber para motoristas — que oferecem visibilidade e conveniência, mas impõem regras, taxas e algoritmos que tornam o profissional refém de sistemas que não controla.

“Trabalho por conta própria, mas não me sinto dono do meu trabalho”, resume uma terapeuta de Lyon. “A plataforma define quanto cobro, quem me vê primeiro e até quando posso aparecer nas pesquisas.”

Grandes empresas: ilesas e eficientes

Enquanto os pequenos afundam num mar de microtarefas e burocracias, as grandes empresas navegam com agilidade. A razão? Escala e integração.

Empresas de média e grande dimensão internalizam serviços (jurídico, IT, contabilidade, RH) ou contratam fornecedores exclusivos com SLA (Service Level Agreement) robustos. Contam com equipas que respondem a falhas rapidamente, sistemas informáticos personalizados e poder negocial perante os reguladores.

Além disso, muitas estão isentas de plataformas intermediárias, pois possuem marcas próprias fortes, equipas de marketing e clientes fidelizados. O resultado é um fosso crescente entre a produtividade de um profissional liberal e a de um gestor corporativo.

Perde-se a liberdade… e a competitividade

A ironia é flagrante: o profissional liberal carrega o risco do empreendedorismo, mas sem os instrumentos de autonomia real. Fica sujeito à rigidez dos prestadores externos, à instabilidade de plataformas e à complexidade crescente da legislação. O seu rendimento, muitas vezes, não reflete o valor do seu conhecimento, mas sim a capacidade de gerir terceiros — geralmente mal pagos, sobrecarregados ou indiferentes.

Esta tendência levanta uma questão inquietante: a quem serve esta fragmentação? Estará o Estado, em nome da proteção e da rastreabilidade, a favorecer um modelo de microempresário vulnerável e dependente? Estará o mercado digital a impor um novo feudalismo, onde o pequeno trabalha para as plataformas que o distribuem?

Caminhos alternativos

Alguns profissionais tentam resistir:

  • Criando redes colaborativas entre independentes para partilhar recursos;

  • Automatizando tarefas com ferramentas simples e sob controlo próprio;

  • Rejeitando plataformas em favor de marcação direta com os clientes;

  • Ou até reduzindo o volume de atividade para preservar a qualidade de vida.

Mas estas estratégias têm limites num sistema cada vez mais orientado para a padronização e a vigilância.


Conclusão:
A fragmentação da cadeia produtiva, longe de empoderar os profissionais liberais, está a engoli-los num labirinto de microdependências. Enquanto os grandes integram e ganham escala, os pequenos tentam sobreviver em terrenos alheios, perdendo produtividade, tempo e, muitas vezes, a própria vocação. A liberdade profissional, afinal, pode estar a tornar-se apenas uma ilusão regulamentada.

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