12 maio 2025

CUATRECASAS - Uma Máfia Legal (47)

 (Continuação daqui)

Tomada de posse do juiz Francisco Marcolino (primeiro à esquerda) como Inspector Judicial na presença do presidente do STJ e CSM, juiz Noronha do Nascimento (primeiro à direita)


47. O negócio da honra

No Estado Novo de Salazar, o direito à liberdade de expressão estava seriamente restringido através da censura.  No embate entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão prevalecia o direito à honra e era por essa via, como em todos os regimes autoritários, que se calavam os críticos.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que é uma carta de direitos democráticos, foi assinada em 1950 e entrou em vigor em 1953 entre várias democracias europeias que emergiram da Segunda Guerra Mundial. Portugal, porém, só aderiu à CEDH em 1978 quando o país já vivia em democracia.  

Portugal era agora uma democracia mas a sua história era o espelho de uma cultura profundamente anti-democrática. O país viveu sete séculos, desde a sua fundação em 1143 até à revolução liberal de 1820, em regime de monarquia absoluta. Seguiu-se um século de uma democracia constitucional turbulenta, frequentemente interrompida por períodos de suspensão das garantias constitucionais, e que terminou com a revolução de 28 de Maio de 1926. Depois, veio o regime de Salazar, uma espécie de monarquia absoluta sem rei.

Pelo caminho, Portugal, juntamente com a Espanha, tinham sido os líderes da batalha ideológica contra o protestantismo em que o catolicismo reclamava ser a única e verdadeira religião cristã, enquanto o protestantismo afirmava a liberdade de pensamento e de religião, e aceitava a variedade de crenças religiosas nas chamadas seitas protestantes, que estaria na origem da moderna democracia e dos partidos políticos. À liberdade protestante, os países ibéricos contrapuseram a Inquisição, quem pensasse de maneira diferente corria o risco de ser preso, destituído dos seus bens e acabar na fogueira. 

O regime do Estado Novo era um regime tipicamente católico, na realidade Salazar concebeu-o, em parte, inspirado na Encíclica Quadragesimo Anno  do Papa Pio XI, publicada no ano (1931) em que se comemoravam os 40 anos da primeira encíclica social da Igreja - a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1891). Não havia partidos políticos no Estado Novo e não havia liberdade de expressão. Para a teologia católica, a liberdade é, ainda hoje, a porta aberta ao pecado. 

Em 1978 Portugal era um país com uma cultura profundamente anti-democrática a aderir a uma carta de direitos democráticos. A transição não iria ser fácil e, na realidade - se é que algum dia vai ser conseguida -, ela dura ainda hoje. Quase quarenta anos depois, os crimes por difamação e, mais geralmente os crimes por ofensas, transformaram-se numa forma de enriquecimento ilícito, uma forma de criminalidade legal, ao dispôr sobretudo dos insiders do sistema de justiça, que usam e abusam da cultura medieval e anti-democrática que prevalece no sistema judicial português.  

Esperar-se-ia que estes criminosos que corrompem a justiça fossem uns sem-abrigo, uns desempregados ou até uns ciganos, que têm as costas largas. Mas não, os mais frequentes são juristas, sobretudo advogados e juízes, e também políticos, a maior parte dos quais são juristas. Neste mercado de criminalidade legal onde se transacciona a honra e o bom nome, o preço de mercado anda pelos 50 mil euros - a chamada Chapa 50 -, que foi exactamente a importância que o Paulo Rangel e a Cuatrecasas me pediram, respectivamente, pela suas honras ofendidas.

No centro de um dos mais recentes escândalos de corrupção na justiça - conhecido por Operação Lex - estão vários juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, entre eles, o juiz Rui Rangel, entretanto expulso da magistratura, e a sua mulher, a juíza Fátima Galante, entretanto aposentada compulsivamente.

Já em 1998 dois advogados tinham denunciado a juíza Galante por corrupção, acusando-a de vender sentenças. Ela processou-os por difamação e os tribunais nacionais deram-lhe razão, fazendo prevalecer o direito à honra sobre o direito à liberdade de expressão, segundo uma jurisprudência que é bem portuguesa, mas que não é democrática nem é a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Os advogados e o jornal Independente foram condenados a indemnizar a juíza em 50 mil euros por difamação.   

O advogados recorreram para o TEDH, que lhes deu razão e obrigou o Estado a ressarci-los do dinheiro que tinham pago à juíza Galante. No fim do processo a juíza Galante ficou com os 50 mil euros e quem acabou a suportá-los foram os contribuintes portugueses, que não tinham feito mal nenhum à juíza.

Este casal de juízes, aliás, parecia ter uma certa propensão para enriquecer ilegitimamente através de processos por ofensas, e sempre pela Chapa 50, que é o valor que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) geralmente atribui à vida. 

Foi num destes processos por difamação contra jornalistas do Correio da Manhã (CM), que o juiz Rangel foi apanhado a traficar a sentença com o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).

A dada altura, o CM publicou uma notícia dizendo que o juiz Rui Rangel ia ser julgado por causa de um calote a um clínica de estética. O juiz considerou a palavra calote muito ofensiva, sugerindo que ele era um caloteiro, e pôs um processo por difamação aos jornalistas e ao director do CM exigindo uma indemnização avultada (250 mil euros). Em primeira instância, o CM foi absolvido. 

O juiz Rui Rangel recorreu então para o TRL onde ele próprio era juiz e terá metido uma cunha ao presidente do TRL, na altura o juiz Vaz das Neves, para que o processo fosse distribuído a um juiz amigo dele e que pronunciasse uma sentença que lhe fosse favorável. E assim aconteceu. Um acórdão da Relação de Lisboa, assinado pelo juiz Orlando Nascimento, inverteu a decisão de primeira instância e condenou o CM a pagar uma indemnização de 50 mil euros ao juiz Rangel por "obliteração da honra".

Felizmente, o CM teve a possibilidade de recorrer para o Supremo - uma possibilidade que não teria poucos anos mais tarde -, o qual anulou de forma contundente o acórdão da Relação. Caso contrário, o processo teria seguido os seus trâmites habituais. O CM teria pago a indemnização de 50 mil euros ao juiz Rangel, em seguida tinha recorrido para o TEDH, o TEDH ter-lhe-ia dado razão e obrigado o Estado a ressarci-lo. No fim, o juiz Rangel enriquecia em 50 mil euros à conta dos contribuintes portugueses, que não tinham feito mal nenhum ao juiz.

É assim que as coisas funcionam.

Um dos processos mais cruéis da série Chapa 50 - a que o meu próprio processo pertence em versão dupla -, foi o de um advogado condenado a indemnizar um juiz por difamação em 50 mil euros, dinheiro que o advogado não tinha mas teve que arranjar. O advogado recorreu para o TEDH mas viria a falecer entretanto - diz a família que profundamente amargurado com a injustiça. Tivesse ele vivido mais tempo e teria morrido reconfortado. O TEDH deu-lhe razão e obrigou o Estado português a indemnizar a família pelo valor pago ao juiz. No fim do processo, o juiz enriqueceu em 50 mil euros, e os contribuintes portugueses, que não tinham feito mal nenhum ao juiz, empobreceram pelo mesmo montante.

O caso mais paradigmático de todos envolve o então presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), juiz-conselheiro Noronha do Nascimento e o jornalista José Manuel Fernandes, então director do Público. Em 2006, por ocasião da eleição de Noronha do Nascimento para presidente do STJ, o jornalista escreveu um editorial com o título "A estratégia da aranha" e o destaque "Noronha do Nascimento, o homem que vai presidir ao Supremo, representa a face sombria da nossa justiça"". Noronha do Nascimento pôs um processo por difamação ao jornalista e ao jornal pedindo uma indemnização de 150 mil euros. 

Dizem os relatos que o julgamento foi uma vergonha. Noronha do Nascimento ia sentar-se no tribunal de primeira instância a assistir ao julgamento, o que, dada a sua condição de presidente por inerência do CSM - o órgão que faz a promoção dos juízes - era uma forma de pressionar o juiz. A mulher do jornalista foi co-responsabilizada no processo sob o argumento de que também beneficiava dos rendimentos da actividade profissional do marido. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação e o jornalista e o jornal foram obrigados a indemnizar o juiz em 60 mil euros.

O jornalista recorreu para o TEDH que, num acórdão de 2017 condenou o Estado português por violação do seu direito á liberdade de expressão e obrigou o Estado a ressarci-lo de todas as despesas em que tinha incorrido, incluindo a indemnização ao juiz Noronha do Nascimento, que assim enriqueceu em 60 mil euros à custa dos contribuintes portugueses, sem que qualquer deles lhe tivesse feito algum mal. 

O caso é paradigmático, não só pelo facto de o preço da honra ofendida exceder a Chapa 50 em dez mil euros - uma espécie de prémio de mercado por se tratar do presidente do STJ e do CSM, a mais alta figura da Justiça no país - mas também pela desvalorização que o juiz Noronha do Nascimento fez da decisão do TEDH dizendo na altura aos jornalistas que o TEDH não faz jurisprudência em Portugal, algo que mais tarde viria a reiterar por escrito num artigo de 2019 na revista Julgar.

O artigo começava assim:

"Tem-se assistido no nosso país a um frequente forcing mediático, todo ele destinado a convencer o mundo inteiro de que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é o suprassumo jurídico do direito da Europa e que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) é a pedra angular e fundadora do moderno direito europeu de vocação universal.

"O que isto significa é simples de perceber: quer-se convencer por um lado, que o TEDH vai fixar convencionalmente o direito que, num futuro próximo, regerá meio mundo, e, doutra parte, que a jurisprudência do TEDH é a nova bíblia que convém decorar porque será sobre ela que as relações sociais futuras assentarão juridicamente (...)"

Estas são palavras de um ex-presidente do Supremo Tribunal de um país que mais de quarenta anos antes tinha assinado um Tratado Internacional onde se comprometia a respeitar as decisões do TEDH e, por implicação, a sua jurisprudência. A cultura trapaceira da justiça em Portugal era aqui exibida em todo o seu esplendor pelo seu mais alto representante.

O juiz Noronha do Nascimento tinha sido presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, presumindo-se, portanto, que é um anti-fascista convicto. A verdade, porém, é que nenhum presidente do STJ do tempo de Salazar desdenharia escrever aquilo que ele escreveu acerca do TEDH e da sua jurisprudência. Em toda aquela sua prosa ele exibia a cultura medieval, autoritária, inquisitorial e anti-democrática que ainda hoje vigora na justiça portuguesa, em parte por culpa dele. 

O jornalista José Manuel Fernandes era bem capaz de ter razão quando escreveu que o juiz Noronha do Nascimento representava a face sombria da nossa justiça. Em Junho de 2010, uma nota do Conselho Superior da Magistratura, de que ele era o presidente, dava notícia da nomeação de um juiz-desembargador do Tribunal da Relação do Porto para Inspector Judicial,  acompanhada de várias fotografias com os intervenientes na cerimónia.

O nomeado era um discípulo do juiz Noronha do Nascimento, mas muito mais papista que o Papa. Agora é que iriam ser elas! O negócio da honra iria conhecer um incremento considerável entre os juízes, mas também entre os advogados e até os magistrados do Ministério Público, para não falar em políticos, a maior parte  deles juristas. O presidente do Supremo tinha dado o exemplo. Se a honra do presidente do Supremo, com a categoria de juiz conselheiro, valia 60 mil euros, a de um juiz desembargador deveria valer pelo menos uns 40 ou 50 mil, mas ele chegou a pedir um milhão.

A nota era a seguinte:

"No dia 01 de Junho de 2010,, na sede do Conselho Superior da Magistratura, tomou posse como Inspector Judicial o Dr. Francisco Marcolino de Jesus, Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto, na sequência da publicação da Deliberação do Plenário do CSM, de 04 de Maio de 2010. O acto foi presidido por Sua Excelência o Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Juiz Conselheiro Dr. Noronha Nascimento e teve a presença de Vogais do CSM, Inspectores Judiciais, dirigentes e funcionários do CSM. (...)".


(Continua acolá)

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