(Continuação daqui)
10. Por exemplo, a Cuatrecasas
A Ordem dos Advogados foi criada em 1926 e já nasceu desfasada do seu tempo. Na altura, o número de advogados em Portugal era ainda pequeno, eles conheciam-se uns aos outros. Durante séculos, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra foi a única a produzir advogados no país e só após 1913 ela recebeu a companhia da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa a licenciar juristas.
Como indica o seu nome (Ordem) e o do seu próprio chefe (Bastonário), a Ordem dos Advogados está inspirada nas corporações medievais, visando controlar a entrada de novos membros na profissão e garantir a credibilidade pessoal e profissional dos seus membros perante a sociedade. O propósito era manter os seus membros na ordem e assegurar que quem saísse da ordem levaria umas "bastonadas" para regressar ao bom caminho.
Este escrutínio da Ordem sobre os seus membros era possível no ambiente medieval de pequenas comunidades fechadas em que todos se conheciam, às vezes desde os bancos da escola e da universidade, e Portugal manteve esse tipo de sociedade até bem já dentro da modernidade. Porém, a situação mudou radicalmente nas últimas décadas com o advento da democracia liberal, o país tornou-se uma sociedade grande e aberta onde a maior parte das pessoas não se conhecem umas às outras.
Existem agora muitas universidades a produzir advogados, eles já não se conhecem uns aos outros, o número de advogados inscritos na Ordem ultrapassa hoje os 40 mil, um número que torna impossível aos dirigentes da Ordem conhecer os seus associados e garantir a sua credibilidade pessoal e profissional perante o público.
O resultado é que o Estatuto da Ordem dos Advogados - que é Lei no país e ao qual o Estado português defere uma parte do seu poder soberano -, que foi concebido para a prática individual (liberal) da advocacia num ambiente em que os advogados eram poucos e se conheciam uns aos outros, se tornou radicalmente inapropriado num ambiente em que os advogados são aos milhares, deixaram de se conhecer uns aos outros, e a advocacia passou a ser largamente praticada por grandes corporações capitalistas, como são as grandes sociedades de advogados.
Em consequência, a Ordem dos Advogados que nasceu, em parte, para proteger o público das más-práticas e dos abusos dos advogados incompetentes ou criminosos, a quem os cidadãos conferem grandes poderes de representação, acabou por se tornar, ela própria, largamente uma corporação protectora dos advogados incompetentes e dos advogados criminosos. Na realidade, o Estatuto da Ordem dos Advogados legaliza, hoje em dia, verdadeiras máfias dentro da advocacia.
Um exemplo ajudará a esclarecer a situação. Diz assim o artº 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados relativo ao "Segredo profissional":
Artigo 92.º Segredo profissional |
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional. 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5. 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever |
Suponhamos que um homem entra por uma sociedade financeira dentro ( v.g., Banco, Fundo de Investimento) com malas contendo vários milhões de euros em notas e se dirige ao funcionário que o atende, com o seguinte pedido: "Quero que me invistam este dinheiro. Estou pronto a pagar uma comissão generosa de 30% do capital investido mais 50% dos ganhos". Admitamos ainda que o próprio homem afirma, ou o funcionário desconfia, que o dinheiro é proveniente do tráfico de droga.
Como reagirá este funcionário e a empresa financeira?
Resposta. Vão dizer a este cliente que não podem aceitar o dinheiro e ficam obrigados a denunciá-lo às entidades de supervisão financeira (Banco de Portugal e CMVM) e ao Ministério Público.
Suponhamos agora que o mesmo homem entra com a mesma proposta numa sociedade de advogados, por exemplo, a Cuatrecasas.
Como reagirá o advogado que o recebe e a sociedade de advogados de que ele faz parte?
Sugestão. Cf. acima, artº 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados (ênfases meus).
Chama-se omertà ou lei do silêncio, um dos pilares essenciais em que assenta a Máfia.
(Continua acolá)
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