O DIA MAIS NEGRO
Completam-se hoje 269 anos sobre um dos dias mais negros da história de Portugal, o dia do terramoto de Lisboa de 1755. Foi num dia de Todos-os-Santos, pelas 9:30 de uma manhã de sábado, quando a terra começou a abalar de forma tenebrosa, seguindo-se quase de imediato um maremoto (tsunami) e, mais tarde, incêndios devastadores. Acabou por ser o dia de Todos-os-Demónios.
O terramoto foi sentido por toda a Europa e norte de África e, pela sua magnitude, suscitou acesas polémicas filosóficas e inspirou Voltaire a escrever o “Pòeme sur le Désastre de Lisbonne” (1756) e mais tarde o famoso romance Candide (1759).
Lisboa tinha na altura cerca de 200.000 habitantes e estima-se que tenham perecido 5 a 10%. O espectáculo dantesco do “desastre de Lisboa”, como lhe chamou Voltaire, resultou da combinação dos abalos, com o tsunami e os incêndios; como era dia de Todos-os-Santos, as Igrejas estavam repletas e as velas acesas terão contribuído para atear os fogos.
Quem sobrevive a um evento desta natureza fica marcado para o resto da vida e passa esse estigma à descendência: esta vida não vale nada, nunca se sabe o que pode acontecer, tudo acaba num instante, não te esforces demasiado que não vale a pena.
Estas frases da cultura portuguesa são actuais e têm a mesma força depressiva dos abalos de há 269 anos. Terão as suas raízes no desastre de Lisboa? Eu penso que sim. Talvez seja essa a causa de sermos um País curtoprazista e avesso ao risco. Arriscar para quê? A morte é certa!
Mas é verosímil que decorrido tanto tempo ainda estejamos a sofrer de uma espécie de PTDS cultural colectiva, psicológica ou até epigenética?
Basta pensar em eventos passados, como os Descobrimentos Portugueses, a Independência dos EUA (1776), a Revolução Francesa (1789) e as guerras Napoleónicas (1803 a 1815), para perceber que esses acontecimentos se tornam “hereditários” e continuam a marcar os povos e a caracterizar as nações.
Acresce que depois dos abalos geológicos Portugal sofreu outro abalo profundo, social e político, com a desgovernação desse facínora sem escrúpulos, assassino e ladrão, chamado Sebastião de Carvalho e Melo, de 1756 a 1777.
O Sebastião intuiu de imediato as vantagens que se poderiam retirar do terramoto, como explicou no seu opúsculo: “As Vantagens que o Rei de Portugal Pode Obter do Terramoto de 1755”. Quem mais beneficiou, porém, foi ele próprio que se tornou no político mais opulento da Europa.
A centralização do poder do Estado, a “nacionalização da Inquisição”, o absolutismo real e o terror, atiraram sal para as feridas do terramoto. Citando Voltaire: ‹‹depois da tragédia veio o terror››.
Amedrontados, os portugueses sucumbiram ao pombalismo e passaram a ver o Estado como o patriarca redentor que nos pode proteger de catástrofes. A admiração pelo sacana do Sebastião é um caso claro da síndrome de Estocolmo.
Como é que podemos apagar da memória esse dia negro de 1755? Não podemos, nem devemos; é bom ter consciência de que tragédias podem ocorrer a qualquer momento e quando menos se espera, para não reagirmos como zombies.
De todas as “grandes tribulações” clássicas, a Morte, a Guerra, a Fome e a Peste, neste dia 1 de Novembro de 2024, quando se fala com banalidade de uma possível WWIII, pensemos nas guerras que estão a decorrer e que vão estigmatizar todas as populações afectadas. Um milhão de mortos na Ucrânia (50* o número de vítimas do terramoto de 1755) e 40.000 mortos na Palestina (talvez o dobro do terramoto).
O Sebastião aproveitou-se do terramoto para enriquecer, como energúmeno que era. Diferente, porém são as catástrofes que resultam da ação deliberada e premeditada de líderes gananciosos e sem escrúpulos que desencadeiam guerras para enriquecer à custa de milhões de vidas humanas.
Camilo Castelo Branco apelidou o Sebastião de “Nero da Trafaria” pelo massacre que perpetrou na Trafaria, em 23 de Fevereiro de 1777, onde morreram incineradas cerca de 5000 pessoas. Atravessamos, porém, uma época em que as vítimas dos gangues que se apoderaram dos governos se contam por milhões e não milhares.
Neste aniversário de um evento que marcou gerações de portugueses, pensemos em superar o estigma das catástrofes naturais e a desgovernação dos “ditadores iluminados” e condenemos com veemência as catástrofes que podem ser evitadas pela via diplomática.
O desastre de Lisboa pode servir de lição e, por ser bem real, tem mais relevância do que qualquer disciplina de cidadania.
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