(Continuação daqui)
399. Quem é que ele julga que é?
A Idade Média é o período da história ocidental em que o poder era adjudicado administrativamente de cima para baixo. O rei absoluto, que alegadamente recebia o poder do Altíssimo, adjudicava-o depois aos seus colaboradores mais próximos, e estes aos seus respectivos adjuntos segundo uma cadeia hierárquica descendente.
A democracia, que veio com a Idade Moderna, inverteu este processo de adjudicação do poder. O poder deixou de ser adjudicado de cima para baixo por via administrativa e passou a ser adjudicado de baixo para cima por via popular. O primeiro-ministro e os deputados não recebem o seu poder do chefe de Estado, seja ele um rei ou um presidente da República. Recebem-no do povo.
Este processo de transformação foi longo na Europa Ocidental, iniciou-se nos países protestantes do norte da Europa e teve a resistência acérrima dos países que permaneceram inteiramente católicos, como a Espanha e Portugal. Neste combate à democracia e à modernidade, a Inquisição - cuja herança está hoje no Ministério Público - foi instrumental. O Vaticano permanece hoje sugestivamente a única monarquia absoluta da civilização ocidental ou cristã.
Tomou posse esta semana o novo director do DCIAP - o departamento do Ministério Público que tenho referido como a sede da nova Inquisição - e que se ocupa dos casos de criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade (cf. aqui).
Seria de esperar que no seu discurso de tomada de posse o magistrado Rui Cardoso tranquilizasse os portugueses e prometesse solenemente que estava ali para os proteger de redes de terroristas ou de narcotraficantes, de gangues altamente organizados e violentos, de corporações mafiosas e da grande criminalidade económico-financeira.
Mas não. O único grupo de potenciais criminosos que o magistrado Rui Cardoso singularizou no seu discurso e aos quais deixou um sério aviso, senão mesmo uma ameaça, foi àqueles que "pensam que o voto popular tudo legitima" (cf. aqui e aqui)
Neste detalhe o novo director do DCIAP exprime a essência da cultura inquisitorial que ainda hoje se vive no Ministério Público - a desconfiança e a aversão à democracia e aos políticos democraticamente eleitos.
É uma profunda ironia ver um homem que recebeu o seu poder por via administrativa como na Idade Média a ameaçar aqueles que o receberam por via popular. É a inversão do espírito democrático. O magistrado Rui Cardoso, que não responde perante o povo, ameaça aqueles que foram eleitos pelo povo: "Portem-se bem, senão meto-vos na prisão!". A arrogância anti-democrática não tem limites, um poder não-eleito a ameaçar os poderes eleitos, e tudo isto se passa numa democracia.
É caso para perguntar: Quem é que ele julga que é?
Um reizinho absoluto, que era assim que se sentiam os velhos inquisidores que recebiam uma pequena parcela do poder real e absoluto.
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