05 agosto 2024

A DEUSA DE NEGRO


— Eu nasci para usar preto – parecia gritar a mulher que causava alvoroço ao atravessar a sala na minha direção, guiada pelo chefe-de-mesa, também de preto, no seu smoking com laço preto e luvas brancas.

 

Levantei-me à sua aproximação e cumprimentei-a de beija-mão. — Que pele suave e que fragrância inebriante – pensei. Apertei-lhe suavemente a mão antes de a libertar, despertando-lhe um sorriso no olhar que me encantou.

 

Sentámo-nos e permanecemos uns minutos em silêncio, interrompido pelo escanção que nos veio propor um aperitivo.

 

— Champanhe... para os dois – pedi, depois de receber um aceno afirmativo da Alva.

 

Há cerca de 25 anos eu também jantei aqui no restaurante do Ritz com a mãe da Alva, a minha querida amiga e colega Helena Maria, com quem me tinha cruzado no Congresso Europeu de Cirurgia, que decorria em Paris, no Palais des Congrès.

 

— A tua mãe está bem? – perguntei.

 

— Está óptima, está com o pai num cruzeiro a Nova Iorque e às Bermudas.

 

— Maravilha, ela sempre adorou viajar.

 

— Sim, já tinham este cruzeiro planeado há uns anos, mas sabes como é... com o trabalho.

 

— Os teus pais devem estar a reformar-se, não?

 

— Os médicos não se reformam, olha para ti – disse a Alva com um sorriso.

 

— Tens razão, eu quando me reformar da medicina quero abraçar uma nova profissão.

 

— Sim? – perguntou a Alva com um trejeito de curiosidade. E o que vais fazer: pintar ou investir em vinhos?

 

Sorri, é verdade que muitos médicos se dedicam às artes e à viticultura depois da reforma. A minha jovem colega parecia ver estas actividades com ironia.

 

— Vou escrever... “short stories”...

 

— A mãe diz que tu tens talento para contador de histórias – disse com um sorriso.

 

— A tua mãe é uma brincalhona...

 

— Fala sempre de ti com carinho.

 

— Fomos colegas de curso e trabalhamos juntos durante algum tempo.

 

— Namoraram?

 

— Não, a tua mãe namorava com o Nuno, o teu pai. — Fala-me de ti, quero saber tudo sobre os teus projectos...

 

A Alva tinha acabado o curso de medicina há dois anos e ainda estava indecisa sobre uma especialidade. Enquanto a ouvia deliciava-me com a sua beleza e espontaneidade. Trazia o cabelo apanhado atrás, a destapar inteiramente o rosto, que enaltecia com uma maquiagem suave.

 

O seu olhar era incontornável e atraía com a força do mar; lembrei-me da descrição que o Machado de Assis fez do olhar da Capitu: como “a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca” – uma atração fatal.

 

A Alva continuou a falar da vida e dos seus sonhos e eu permaneci extasiado como um totó.

 

Depois do carpaccio de vieiras veio a lagosta à thermidor e por fim uma sobremesa de frutos vermelhos servidos numa cesta tecida com fios de caramelo, que deliciava o olhar mesmo antes de deliciar as papilas gustativas.

 

— Tens estado muito calado – comentou a Alva.

 

— Tenho estado fascinado contigo, tão jovem, tão bonita... e tão sexy.

 

— Não devias ter pedido a segunda garrafa de champanhe...

 

Brindamos mais uma vez e, quando pousei a taça, toquei na mão da Alva com uma suave carícia que foi de imediato correspondida.

 

— Podemos acabar o champanhe no quarto – disse-lhe, fixando o meu olhar no dela enquanto lhe acariciava a mão.

 

— Podemos, mas não devemos...

 

— Sabe bem fazer um pecado daqueles com via verde para as chamas do Inferno.

 

A Alva deu uma gargalhada e acrescentou:

 

— A culpa é do Bollinger Rosé...

 

Levantamo-nos e saímos de braço dado. No elevador reparei no brincos de argolas e no colar de pérolas naturais, ofuscadas pela beleza da minha jovem companheira.

 

Chegados ao quarto, pedi outra garrafa de champanhe e morangos e fiquei por minutos a contemplar a feminilidade e elegância da Alva. O vestido preto tinha duas alças presas por botões e um decote em V com uma espécie de lapelas que desciam até ao umbigo e que se cruzavam para se transformar num cinto que apertava nas costas. O tecido tinha um aspecto sedoso e alguma textura que enriquecia a monotonia do negro.

 

— Lindo o teu vestido, a tua mãe também adora o preto. Costumava dizer que um vestidinho preto fica sempre bem...

 

— Ah ah ah, vou-te confessar um segredo: este vestido era da minha mãe, mas já não lhe serve. Deu-mo para esta viagem...

Servi o champanhe e ia aproximar-me da Alva quando ela me parou, cruzou os braços sobre o peito e desapertou as alças do vestido que caiu de um golpe, expondo a magnificência do seu corpo juvenil, velado apenas pelos braços delicados que permaneciam cruzados.

 

‹‹Minha querida Helena Maria, como é forte a tua ausência presente›› – pensei.

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