O CÃO-MASSA
“É possível tirar o lobo da selva, mas não é possível tirar a selva do lobo”
O João tinha adoptado o Bit quase por imposição das netas que amavam os huskies siberianos, a raça de cães que mais faz lembrar os lobos. Com uma pose selvagem e um olhar penetrante, os huskies seduzem com facilidade os amantes da natureza. Adoram correr, saltar, apanhar bolas e até nadar; são atletas naturais.
O Bitinho, como lhe chamávamos, era um bebé adorável, fofinho e ternurento, com um apetite insaciável e uma boa disposição que nos encantava e fazia as delícias das miúdas.
Em cerca de dois anos, o Bitinho cresceu um montão e transformou-se no Bitão – um lobão com mais de trinta quilos e uma força física de campeão olímpico. As miúdas, entretanto, cansaram-se da novidade e deixaram o animal ao inteiro cuidado do avô.
O João, com bastante tempo livre, tinha adoptado uma rotina própria. Saía de manhã para as compras e para passear o Bit, almoçava, tirava um descanso e dava outra volta ao fim-do-dia.
O almoço tinha-se tornado complicado porque o Bitão exigia partilhar a refeição do João e rosnava ameaçadoramente quando este não lhe fazia a vontade. Era ver o animal a arreganhar-lhe os dentes em tom ameaçador e a trepar à mesa para chegar aos alimentos.
‹‹Que Diabo, o animal deve estar farto dos “croquetes”›› – pensava o João, que passou a comprar bocados de carne e fígado de vitela para o Bit. O cão abocanhava tudo rapidamente, mas ainda se atirava ao almoço do avozinho. Era vê-lo com a boca ensanguentada a aproximar-se da mesa de jantar à procura de petiscos.
À noite o João tinha por costume sentar-se no sofá a ver o noticiário da RTP, mas o Bit começou a fazer questão de ocupar o seu lugar e de lhe rosnar se ele se aproximasse. ‹‹O animal também tem direito a descansar›› – pensava o João, que também estava farto da treta dos “comentadeiros”.
O avô passou a deixar o Bit no sofá e a ir mais cedo para a cama, na companhia do seu querido Tolstói, para meditar sobre a pobreza e sobre o papel do Estado. ‹‹Se eu fosse mais novo tornava-me anarquista›› – pensava o João.
Num dia de Inverno, de chuva e trovoada, o Bit apareceu no quarto e atirou-se para a cama. O João compreendeu que o animal estava espavorido e permitiu-lhe que partilhasse o leito. Foi um hábito que se entranhou, pois o Bit passou a preferir a cama ao sofá.
O problema é que não demorou até o animal expulsar o João do quarto e obriga-lo a dormir no sofá, o que para a sua provecta idade era um verdadeiro suplício.
A rotina impôs-se, mas ao contrário das expectativas do João, quem a impôs foi o Bit. Acordava pelas seis da matina e obrigava o João a levá-lo à rua, não prescindia da sua dose cavalar de carne ensanguentada e desfrutava, à sua bela disposição, de toda a casa.
O Bit exibia o comportamento bárbaro dos seus ancestrais antepassados, sem qualquer respeito por hierarquias ou princípios. A sua vontade era a lei da casa e ao João restava-lhe o papel de escravo. O Bit, pela força bruta, tudo dominava à sua volta.
Sem qualquer capacidade de compreender a sua situação de dependência, o Bit acreditava num futuro eterno de bem-estar e abundância, sem abranger que tudo dependia do João.
Numa fria manhã de Dezembro, o Bit arrastou o João para o seu passeio matinal, mas ao descerem apressadamente as escadas, o animal tropeçou no avô que caiu e ficou inerte no chão.
O Bit aguardou surpreendido ao seu lado, viu chegar uma ambulância do INEM que levou o João, sem que ninguém lhe tivesse prestado atenção.
Com o seu comportamento habitual de macho alfa, o Bit regressou a casa e deitou-se ao lado da gamela à espera da carne...
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