23 dezembro 2023

Um passo de gigante (143)

 (Continuação daqui)



143. Os torcionários do regime


A Operação Tutti Frutti que, segundo o Ministério Público, vai ser reactivada depois de "um marasmo de quase seis anos" (cf. aqui) teve início em 2015 (cf. aqui). 

Desde há quase nove anos, portanto, que há pessoas publicamente sob suspeita. Estas pessoas tiveram desde então a sua vida radicalmente alterada. Foi prejudicada a sua reputação, frequentemente o único activo que elas possuem para ganhar a vida; foi prejudicada a sua carreira profissional, diminuindo-lhes as possibilidades de emprego ou de promoção na carreira; viram a sua vida devassada, sujeitaram-se ao julgamento público, sem possibilidade de se defenderem; tiveram de dar explicações a familiares e amigos sobre aquilo que fizeram ou não fizeram; e, acima de tudo, frequentemente são pessoas inocentes. 

Manter uma pessoa indefinidamente sob suspeita - seja ela culpada ou inocente -  é uma crueldade e uma forma de tortura. É por isso que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), no seu artº 6º (Direito a um processo justo e equitativo) considera um direito humano fundamental que a justiça seja feita dentro de um "prazo razoável" (cf. aqui). (Portugal já foi condenado centena e meia de vezes no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação deste direito)

Antes de prosseguir, é preciso dizer que Portugal foi um subscritor tardio (1978) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a qual foi assinada em 1950 pelos seus membros fundadores. A razão para isso é que Portugal tem uma tradição autoritária que é incompatível com o carácter democrático da CEDH - uma tradição autoritária que não desapareceu mesmo depois de o país se ter proclamado democrático em 1974 e ter assinado a Convenção em 1978.

Numa tradição autoritária, como diz a própria sabedoria popular portuguesa, "Quem pode manda e quem não pode obedece". Quais direitos, qual carapuça, quem pode faz aquilo que quer, e quem não pode aguenta. O povo, na sua sabedoria, vai mesmo mais longe, e fala a respeito de si próprio: "Não peças a quem pediu, nem servias a quem serviu". Nesta cultura, dar poder a um homem que nunca o teve, nem alguma vez sonhou ter, é o pior que se pode fazer. Ele vai exercer o poder com a maior crueldade, vingando-se, a ele e aos seus iguais, de séculos de sujeição e abuso.

Dar a um matarruano o poder que hoje tem qualquer magistrado do Ministério Público - que, na realidade, não passa de um mero funcionário público - é a receita certa para o mais cruel exercício do poder. Este é o problema central do Ministério Público hoje em Portugal: colocar nas mãos de homens e mulheres do povo - e que nunca conseguiram libertar-se da sua condição de homens e mulheres do povo -, um poder total e absoluto que eles não estão habituados a exercer nem alguma vez imaginaram vir a possuir.

Não surpreende, por isso, a duração inquisitorial dos vários processos judiciais que se arrastam no Ministério Público em clara violação da CEDH. O caso Tutti Frutti é apenas um exemplo. Os casos paradigmáticos são a Operação Marquês, de que a vítima principal é José Sócrates (cf. aqui), e o caso EDP, que tem por figura central Manuel Pinho. A este propósito o advogado Dantas Rodrigues fez em devido tempo uma oportuna intervenção (cf. aqui)  

(Continua acolá)

Sem comentários: