EU ACUSO...!
Precisamos da Medicina Liberal (ML)? Precisamos de médicos independentes que, exercendo de forma autónoma, sejam totalmente livres para advogar os direitos dos doentes?
A resposta a esta pergunta deve ser um inequívoco SIM! Porquê?
Porque, caso contrário, os doentes ficariam reduzidos a joguetes de interesses particulares, induzidos e manipulados para servir objectivos organizacionais que buscam apenas o poder e o lucro e que pouco ou nada respeitam a ética.
Quem assina os cheques manda e quem desobedece ou resiste não tem futuro, tanto no SNS como nos grandes grupos privados. A influência e o poder da “Big Pharma”, por exemplo, resulta de assinarem muitos cheques e de mandarem em muitas instituições.
A providência exige opiniões independentes para evitar as tragédias que resultam do pensamento de grupo. Podem ser “Velhos do Restelo”, Cassandras ou crianças que se riem do Rei que vai nu, mas são vozes que não devem ser canceladas.
Na medicina, os médicos que exercem em regime liberal são essas vozes independentes e tantas vezes incómodas, mas que estão em condições de se oporem a narrativas congeminadas para a politização e financeirização da saúde.
Secundarizar a ML é uma grave miopia política e não serve os interesses do País, mas é disso, precisamente, que EU ACUSO os governantes que desde 1979 (data da criação do SNS) a têm vindo a isquemiar, lenta e progressivamente até ser relegada para uma existência marginal, que o Estado faz o grande favor de tolerar.
Elencar todas os esforços para anular a ML, ao longo destes 44 anos, seria fastidioso. Podemos, contudo, enquadrar em três grupos as medidas que foram sendo implementadas:
1. “Concorrência desleal” do SNS
2. Favorecimento implícito dos grupos empresariais
3. Barreiras ao exercício da ML
A concorrência desleal manifestou-se durante muito anos pela autorização (dada pela tutela) do exercício privado da medicina nos hospitais do SNS. Na prática, o utente que recorresse ao SNS podia ultrapassar as listas de espera se optasse pelo regime privado e pagasse do seu bolso os honorários médicos, enquanto as despesas hospitalares corriam por conta do Estado. Quem recorresse à ML tinha de suportar os honorários médicos e a conta do hospital.
Quando esta prática aberrante (especialmente em oncologia) terminou, sucederam-se-lhe múltiplos programas para “lutar contra as listas de espera”, que secaram o mercado da ML.
Neste momento é o chamado “Adicional”, um programa que se destinava a premiar as equipas com mais produtividade e que passou a períodos (que englobam Sábados e Domingos) em que o SNS “paga à peça” aos seus funcionários. Períodos em que se realizam empreitadas cirúrgicas de intervenções que foram subtraídas às escalas da rotina.
O Ministério da Saúde (MS) sabe perfeitamente que enquanto se operam menos de 10 doentes/ dia numa escala da rotina, no adicional podem ultrapassar os 20. Em vez de premiar a produtividade, o MS premeia a ignávia e a astúcia de encaminhar utentes para “onde se fatura” (e se pode ultrapassar, sem problemas, o teto legal do salário do Presidente da República).
É evidente que é necessário diminuir as listas de espera, mas por que não recrutar a ML para esse esforço, em condições concorrenciais?
Relativamente ao favorecimento implícito dos grupos empresariais, este deriva da aparente facilidade com que as empresas negoceiam contratos com as entidades públicas ou “semipúblicas”, como a ADSE, obrigando os médicos a transitar da ML para o assalariamento. E mesmo nessas circunstâncias, as empresas preferem os profissionais do SNS, que podem acionar o sifão da transferência de doentes convencionados ou segurados do público para o privado.
Por fim as barreiras ao exercício da ML. Dando de barato que todos os portugueses conhecem os custos e entraves impostos pelo fisco e pela Segurança Social aos independentes, é bom não esquecer que o Estado também impõe requisitos físicos e laborais aos consultórios médicos, onerando rendimentos decrescentes. Já não chega uma cédula da Ordem dos Médicos, também é necessária uma Carta de Alforria da Entidade Reguladora da Saúde. E não esquecer que os médicos em regime liberal não podem certificar baixas por doença, nem prescrever exames complementares de diagnóstico comparticipados.
Por todas estas razões e tantas outras que não abordei, a ML tornou-se acessória no sistema de saúde, com tendência a desaparecer.
Vamos ficar melhor, na mesma ou pior?
Na minha enviesada opinião (porque sempre exerci em regime liberal) vamos ficar pior. O sistema de saúde necessita de “pesos e contrapesos” (checks and balances) e a ML é um elemento importante dessa engrenagem.
Entre a vertigem do poder político que governa o SNS e a usura capitalista que governa os grupos privados, a ML não é só importante, também é indispensável. Sem exagero, estou convencido de que a sua sobrevivência é um imperativo civilizacional.
EU ACUSO...! os sucessivos governos, que desde 1979 são responsáveis pelo sistema de saúde, de atentarem contra a ML de forma premeditada e reiterada.
Joaquim Sá Couto
Médico
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